Matéria e Espírito
Nós hoje estamos ao mesmo tempo na melhor época da humanidade e na pior. Tão depressa sentimos que tudo em nós e em redor marcha uníssono em frente, como subitamente um grande atrito emperra as nossas próprias articulações. Há ao mesmo tempo qualquer coisa que nos desacompanha e qualquer coisa que nos anima. Há caminhos inteiros que terminam súbito e não há caminho inteiro e vitalício. E nós desejamos francamente acertar com a direcção única e onde o único obstáculo seja de verdade o mistério do futuro.
Todo aquele que se lance mais animado pela palavra espírito, não creia que faz mais do que estar sujeito a uma determinante actual. A consciência material, como acontece hoje, dá entrada natural para o campo do espírito. Assim também o espírito tem existência vital segundo a qualidade de consciência da matéria. O espírito apartando da matéria não é deste mundo. Espírito e matéria confundem-se em vida.
Acontece, porém, que os fugitivos da matéria transformam em si esse unilateralismo ao ingressar no espírito, e ficam outra vez de banda, inversamente agora, mas como antes. Ora o espírito não tem mais dimensões do que a matéria; são outras, mas idênticas, que se justapõem,
Textos sobre Palavras de Almada Negreiros
4 resultadosAmizade na Empatia Divergente
As pessoas que mais admiro são aquelas que melhor divergem da minha pessoa. Claro está, só se diverge de outrem dentro do que nos é comum. Porque há quem nada tenha de comum connosco, nem sequer a própria existência e a mesma humanidade. E não esqueçamos que o espaço e o tempo são aparências por nós fabricadas para dar passo ao espírito e não lenha para nos queimarmos. Ao mesmo tempo e no mesmo espaço podem juntar-se as pessoas mais alheias entre si e como não acontece na História em tempos e espaços diferentes. A universalidade humana é tão vária que pode um satisfazer inteiramente a sua e sem que lhe passe sequer pela cabeça a de outro que satisfaça também completamente a dele.
O tempo de cada qual é o justo para si. Não é dado a ninguém a ocasião da polícia do tempo de outrem. De modo que à porta da nossa intimidade havemos de pôr a admiração por aquele que vai entrar, tanto em quanto diverge como em quanto coincide connosco. Por outras palavras: não vale mais o nosso mistério do que o de outro qualquer. Só o mistério chega inteiro ao fim.
O Valor da Ingenuidade
O maior perigo que corre o ingénuo: o de querer ser esperto. Tão ingénuo que cuida, coitado, de que alguma vez no mundo o conhecimento valeu mais do que a ingenuidade de cada um. A ingenuidade é o legítimo segredo de cada qual, é a sua verdadeira idade, é o seu próprio sentimento livre, é a alma do nosso corpo, é a própria luz de toda a nossa resistência moral.
Mas os ingénuos são os primeiros que ignoram a força criadora da ingenuidade, e na ânsia de crescer compram vantagens imediatas ao preço da sua própria ingenuidade.
Raríssimos foram e são os ingénuos que se comprometeram um dia para consigo próprios a não competir neste mundo senão consigo mesmos. A grande maioria dos ingénuos desanima logo de entrada e prefere tricher no jogo de honra, do mérito e do valor. São eles as próprias vítimas de si mesmos, os suicidas dos seus legítimos poetas, os grotescos espanatalhos da sua própria esperteza saloia.
Bem haja o povo que encontrou para o seu idioma esta denunciante expressão da pessoa que é vítima de si mesma: a esperteza saloia. A esperteza saloia representa bem a lição que sofre aquele que não confiou afinal em si mesmo,
Uma Direcção, e Não Soluções
A diferença entre solução e direcção é esta: a solução é sempre um remédio passageiro para disfarçar a desgraça. Ao passo que a direcção é a própria dignidade posta nas mãos do desgraçado para que deixe de o ser, e a direcção única é a garantia perpétua dessa dignidade. E foi o que fez Goethe: Descobriu a direcção única. Artista, na verdadeira acepção da palavra; Artista é aquele que precede a própria ciência. Por isso Goethe afastou-se de quantas realidades irrealizáveis onde costumam habitar instaladas as gentes. E impassível, desde cima, assistiu ao desenrolar da tragédia. E viu o mundo inteiro por cima de todas as cabeças, e viu a Europa toda e com cada um dos seus pedaços, e viu cada indivíduo da Humanidade como um pequenino astro tonto que nem sabe sequer ir na parábola da sua própria trajectória, e viu que de todos os seres deste mundo o único que errava o seu fim era o Homem, o dono da Terra! E viu que era na Humanidade que estavam os únicos seres deste mundo que não cumpriam com o seu próprio destino, e finalmente viu! Viu com os seus próprios olhos o que ninguém tinha visto antes dele.