Tremo Sempre Diante do Amor
Nadia, deves ter visto a falta de jeito com que no último momento te pedi o número do telefone e este endereço de correio eletrónico para onde te escrevo, e deves ter-te apercebido também da peregrina desculpa: os dois sabemos que podes conseguir de mil outras maneiras diferentes 05 livros que fiquei de te emprestar. Há-os em muitos lados. Toda a gente os tem. Pode até acontecer que já façam parte da tua biblioteca há anos e que neste momento estejas a olhar as suas lombadas da cadeira onde estás sentada enquanto me lês; e também pode acontecer, na realidade não me admiraria nada, que seja eu quem não os tem nem os teve nunca. Durante o jantar não conseguia tirar os olhos de ti, mas isso já tu sabes. Perante isso, apenas posso esperar que o resto dos comensais, especialmente os teus amigos, não se tenham apercebido de até que ponto me eram indiferentes as restantes pessoas e conversas. Como viste, tenho já um longo caminho percorrido. Sou um homem com passado, como se costuma dizer, embora isso não faça com que seja mais fácil para mim escrever uma carta como esta. Porque isto é uma carta, não é verdade?
Textos sobre Passado de Carlos Castán
2 resultadosO ExercĂcio de Viver
Se o exercĂcio de viver consiste maioritariamente em se ir atraiçoando um por um os sonhos que animaram os nossos anos de infância e juventude, entĂŁo cada pessoa Ă© o resultado exato de um bom punhado de traições. Ă€s vezes centenas. Traem-se os sonhos mais puros e traem-se tambĂ©m os pesadelos. Por erro humano, fugimos de tempestades sem nos apercebermos de que eram tĂŁo nossas e estavam tĂŁo mergulhadas na nossa prĂłpria medula que sem elas nĂŁo poderĂamos existir. Dizemos, salva-me; dizemos, a ti já nĂŁo quererei cravar facas nas pernas, nĂŁo te farei mal, nĂŁo desejarei ver a tua expressĂŁo de dor em nenhum espelho, amar-te-ei de outro modo, adorar-te-ei a partir de um ser que nĂŁo existe, chamarei suplĂcio ao meu passado, chamar-lhe-ei calvário atĂ© chegar a ti. Dir-te-ei que Ă©s suave como sonho o cĂ©u e que nĂŁo me importo de fechar os olhos a tudo para sempre se souber que depois irás beijar-me as pálpebras. NĂŁo serei eu. Lançarei pazadas e mais pazadas de terra sobre o monstro. Aproximar-me-ei o mais possĂvel do nada, de um caixĂŁo sem morto, de uma catedral vazia. Comprar-te-ei flores.
NĂŁo pode ser muito difĂcil porque nada Ă© o que somos em definitivo,