A Memória Coerente
A experiência pessoal e as leituras só valem o que a memória tiver retido delas. Quem tenha lido com alguma atenção os meus livros sabe que, para além das histórias que eles vão contando, o que ali há é um contínuo trabalho sobre os materiais da memória, ou, para dizê-lo com mais precisão, sobre a memória que vou tendo daquilo que, no passado, já foi memória sucessivamente acrescentada e reorganizada, à procura de uma coerência própria em cada momento seu e meu. Talvez essa desejada coerência só comece a desenhar um sentido quando nos aproximamos do fim da vida e a memória se nos apresenta como um continente a redescobrir.
Textos sobre Passado de José Saramago
6 resultadosDeus Precisa de Companhia
A minha proposição inicial, que me atrevo a considerar indiscutível, é de que Deus criou o universo porque «se sentia» só. Em todo o tempo antes, isto é, desde que a eternidade começara, «tinha estado» só, mas, como não «se sentia» só, não necessitava inventar uma coisa tão complicada como é o universo. Com o que Deus não contara é que, mesmo perante o espectáculo magnífico das nebulosas e dos buracos negros, o tal sentimento de solidão persistisse em atormentá-lo. Pensou, pensou, e ao cabo de muito pensar fez a mulher, «que não era à sua imagem e semelhança». Logo, tendo-a feito, viu que era bom. Mais tarde, quando compreendeu que só se curaria definitivamente do mal de estar só deitando-se com ela, verificou que era ainda melhor. Até aqui tudo muito próprio e natural, nem era preciso ser-se Deus para chegar a esta conclusão. Passado algum tempo, e sem que seja possível saber se a previsão do acidente biológico já estava na mente divina, nasceu um menino, esse sim, «à imagem e semelhança de Deus». O menino cresceu, fez-se rapaz e homem. Ora, como a Deus não lhe passou pela cabeça a simples ideia de criar outra mulher para a dar ao jovem,
O Que é a Inspiração?
Eu não sei o que é a inspiração. Mas também a verdade é que às vezes nós usamos conceitos que nunca paramos a examinar. Vamos lá a ver: imaginemos que eu estou a pensar determinado tema e vou andando, no desenvolvimento do raciocínio sobre esse tema, até chegar a uma certa conclusão. Isto pode ser descrito, posso descrever os diversos passos desse trajecto, mas também pode acontecer que a razão, em certos momentos, avance por saltos; ela pode, sem deixar de ser razão, avançar tão rapidamente que eu não me aperceba disso, ou só me aperceba quando ela tiver chegado ao ponto a que, em circunstâncias diferentes, só chegaria depois de ter passado por todas essas fases.
Talvez, no fundo, isso seja inspiração, porque há algo que aparece subitamente; talvez isso possa chamar-se também intuição, qualquer coisa que não passa pelos pontos de apoio, que saltou de uma margem do rio para a outra, sem passar pelas pedrinhas que estão no meio e que ligam uma à outra. Que uma coisa a que nós chamamos razão funcione desta maneira ou daquela, que funcione com mais velocidade ou que funcione de forma mais lenta e que eu posso acompanhar o próprio processo,
A Europa como um Novo Império Germânico
Uma vez mais. Sou um europeu céptico que aprendeu tudo do seu cepticismo com uma professora chamada Europa. Não falando da questão do «ressentimento histórico», a que sou especialmente sensível, mas que, de todo o modo, é ultrapassável, rejeito a denominada «construção europeia» por aquilo que vejo estar a ser a constituição premeditada de um novo «sacro império germânico», com objectivos hegemónicos que só nos parecem diferentes dos do passado porque tiveram a habilidade de apresentar-se disfarçados sob roupagens de uma falsa consensualidade que finge ignorar as contradições subjacentes, as que constituem, queiramo-lo ou não, a trama em que se moveram e continuam a mover-se as raízes históricas das diversas nações da Europa. A União Europeia parece não querer compreender o que se está a passar na ex-União Soviética, nem sequer, apesar de tão à vista dos seus míopes olhos, nos Balcãs, para não falar do que irá passar-se amanhã em África, espaço já anunciado dos grandes conflitos do século XXI, se uma oportuna estratégia de hegemonias partilhadas não instaurar ali um colonialismo de novo tipo… A questão política principal do nosso tempo deveria ser o respeito pelas nações e a dignificação de todas as minorias étnicas, como meio de prevenir os nacionalismos xenófobos,
Ideias de Esquerda
Nunca disse que a esquerda era definitivamente estúpida, disse, sim, que agora mesmo não vejo nada mais estúpido que a esquerda. Porquê? Porque há mais de cinquenta anos que não produz uma única ideia que se diga de esquerda, porque, até quando parecia tê-las, não estava a fazer mais que remastigar ideias do passado sem se dar ao trabalho elementar de as fazer viver sob a luz da actualidade e das suas transformações. A esquerda também é estúpida porque é incapaz de resistir à tentação mórbida que a leva a dividir-se e a subdividir–se sem parar.
O Tempo Vivido
Para mim, filosoficamente (se posso ter a pretensão de usar tal palavra), o presente não existe. Só o tempo passado é que é tempo «reconhecível» — o tempo que «vem», porque «vai», não se detém, não fica presente. Portanto, para o escritor que eu sou, não se trata de «recuperar» o passado, e muito menos de querer fazer dele lição do presente. O tempo vivido (e apenas ele, do ponto de vista humano, é tempo «de facto») apresenta-se unificado ao nosso entendimento, simultaneamente completo e em crescimento contínuo. Desse tempo que assim se vai acumulando é que somos o produto infalível, não de um inapreensível presente.