A ConivĂŞncia com o Mundo
Nasci dura, herĂłica, solitária e em pĂ©. E encontrei meu contraponto na paisagem sem pitoresco e sem beleza. A feiĂşra Ă© o meu estandarte de guerra. Eu amo o feio com um amor de igual para igual. E desafio a morte. Eu – eu sou a minha prĂłpria morte. E ninguĂ©m vai mais longe. O que há de bárbaro em mim procura o bárbaro e cruel fora de mim. Vejo em claros e escuros os rostos das pessoas que vacilam Ă s chamas da fogueira. Sou uma árvore que arde com duro prazer. SĂł uma doçura me possui: a conivĂŞncia com o mundo. Eu amo a minha cruz, a que doloridamente carrego. É o mĂnimo que posso fazer de minha vida: aceitar comiseravelmente o sacrifĂcio da noite.
Textos sobre PĂ©s de Clarice Lispector
2 resultadosMais do que Amor
O amor veio afirmar todas as coisas velhas de cuja existĂŞncia apenas sabia sem nunca ter aceito e sentido. O mundo rodava sob seus pĂ©s, havia dois sexos entre os humanos, um traço ligava a fome Ă saciedade, o amor dos animais, as águas das chuvas encaminhavam-se para o mar, crianças eram seres a crescer, na terra o broto se tornaria planta. NĂŁo poderia mais negar… o quĂŞ? — perguntava-se suspensa. O centro luminoso das coisas, a afirmação dormindo em baixo de tudo, a harmonia existente sob o que nĂŁo entendia.
Erguia-se para uma nova manhĂŁ, docemente viva. E sua felicidade era pura como o reflexo do sol na água. Cada acontecimento vibrava em seu corpo como pequenas agulhas de cristal que se espedaçassem. Depois dos momentos curtos e profundos vivia com serenidade durante largo tempo, compreendendo, recebendo, resignando-se a tudo. Parecia-lhe fazer parte do verdadeiro mundo e estranhamente ter-se distanciado dos homens. Apesar de que nesse perĂodo conseguia estender-lhes a mĂŁo com uma fraternidade de que eles sentiam a fonte viva. Falavam-lhe das prĂłprias dores e ela, embora nĂŁo ouvisse, nĂŁo pensasse, nĂŁo falasse, tinha um olhar bom — brilhante e misterioso como o de uma mulher grávida.