Textos sobre Pés de José Luís Peixoto

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Textos de pés de José Luís Peixoto. Leia este e outros textos de José Luís Peixoto em Poetris.

As Pernas Pesadas

Hoje, temos as pernas pesadas com o nosso peso. Andamos a ver onde pomos os pés, a acautelarmo-nos para não cair, porque se partíssemos uma perna era a nossa morte. Sentimos uma tremura invisível nas pernas, e hoje avançou essa tremura para o dobro, e já se nota ao olhar. Os ossos não se dobram da mesma maneira. Até o respirar é muito diferente do que já foi. Dantes, era corrido, era uma coisa em que não reparávamos. Hoje, é precisa mais força para sorver o ar e, quando o sopramos, soltamos um ruído de asma, como se tivéssemos o pescoço meio entupido ou tivéssemos engolido uma gaita enferrujada.

A Mulher de Negro

Os sons da floresta, as árvores, a bicicleta e, ao longe, o silêncio imóvel de um vulto negro. Aproximei-me e era uma mulher vestida de negro. Um xaile negro sobre os ombros. Um lenço negro sobre a cabeça. O som dos pneus da bicicleta a pararem, o som de amassarem folhas húmidas e de fazerem estalar ramos. Os meus pés a pousarem no chão. Os olhos da mulher entre o negro. Os olhos pequenos da mulher. O seu rosto branco. Vimo-nos como se nos encontrássemos, como se nos tivéssemos perdido havia muito tempo e nos encontrássemos. O tempo deixou de existir. O silêncio deixou de existir. Pousei a bicicleta no chão para caminhar na direcção da mulher. Era atraído por segredos. Durante os meus passos, a mulher estendeu-me a mão. A sua mão era muito velha. A palma da sua mão tinha linhas que eram o mapa de uma vida inteira, uma vida com todos os seus enganos, com todos os seus erros, com todas as suas tentativas. Os seus olhos de pedra. Senti os ossos da sua mão a envolverem os meus dedos. Não me puxou, mas eu aproximei o meu corpo do seu. Senti a sua respiração no meu pescoço.

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Na Tua Voz, Irmão

Estavam sentados e não falavam. Cada um olhava para um lado que não via. Atrás dos rostos tristes, cismavam. Pensando, Moisés dizia palavras ao irmão, esperançado de que ele as ouvisse; no pensamento, dizia será um instante e trará a solidão. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro. Já reparaste?, nunca precisámos de nos chamar. Não sei como é o meu nome na tua voz. Na tua voz, irmão, irmão. Não sei como é o teu nome na minha voz. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro, e o desespero será a antecâmara de uma dor triste a que nos habituaremos, como se habitua um homem sem coração ao espaço negro no peito. Viveste sempre na minha vida, e eu estive sempre contigo quando sorriste. Hoje, a solidão. Desapareceremos um do outro, deixaremos de ser nós para sermos só tu e só eu. Mas não esqueceremos. E lembrarmo-nos será o maior sofrimento, recordarmos o que fomos onde estivermos e não podermos ser mais nada nesse dia. Lembrarmo-nos de quando acordávamos e olhávamos um para o outro, pois tínhamos acordado ao mesmo tempo e tínhamos ao mesmo tempo pensado em ver-nos. Lembrarmo-nos de falar na nossa maneira de falar,

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Estamos Atados, Filho

Levar-vos-ei sempre comigo. Olho de frente o último raio de sol antes de o sol desaparecer. Penso: um homem é um dia, um homem é o sol durante um dia. E é preciso continuar. Avançam os meus pés sobre a terra. Filho, dormes ainda, e quis mostrar-te o sol-pôr. Quis mostrar-te a terra, ensinar-te a cor da terra por dentro, porque quem conhece a cor da terra por dentro conhece o mundo e os homens. Filho, o sol desapareceu agora e deixou uma aura vermelha de sangue à volta do cabeço onde entrou, e quis ensinar-te que amanhã estará calor. Quis ensinar-te que, se não vires as estrelas de noite, espera chuva no dia seguinte. E saberes isto é saberes tudo. São estas as poucas coisas que nos dão a saber. O resto, filho, são mistérios sem explicação. O resto são punhais apontados dentro do nevoeiro. O resto são punhais que vemos aproximarem-se do nosso peito, e estamos atados, filho.