O Dinheiro Financia as Circunstâncias
Já dizia o filósofo: eu sou eu e as minhas circunstâncias. Muito bem dito. Pois é o dinheiro que te permite financiar as tuas circunstâncias; se falta o dinheiro, ficas sozinho com o teu vazio, mero invólucro sem circunstância que valha um tostão furado: abandona-te essa mão oportuna que te daria uma palmada nas costas para cuspires o fiapo de frango meio mastigado que nesse momento te entope a glote não, não o digo por ti, Liliana, como podes pensar uma coisas dessas, estou a falar em termos gerais, bem sei que tu nunca me abandonarias); se tens dinheiro, pelo contrário, podes comprar companhia, um enfermeiro, uma enfermeira. Podes pagar a uma pedicura que te corte as unhas dos pés — uma tarefa que se te torna cada vez mais esgotante — e as lime para que não se dobrem e se cravem na carne, uma profissional hábil e cuidadosa que te extraia os calos e te desinfete essas perigosas feridas na planta do pé que a hiperglicemia ameaça tornar crónicas e que, se perdurarem e alastrarem, podem gangrenar e obrigar à amputação do membro; tendo dinheiro, podes dar-te ao luxo de contratar um massagista, um cabeleireiro que te corte o cabelo e te barbeie na cama,
Textos sobre PĂ©s de Rafael Chirbes
2 resultadosA Luta de Classes Acabou
A luta de classes esfumou-se, dissolveu-se, a democracia tem funcionado como um diluente social: toda a gente vive, compra e acorre ao hipermercado, ao balcĂŁo do bar e aos concertos pagos pelo municĂpio na praça central, e todos falam ao mesmo tempo, vozes que se misturam como nas tumultuosas reuniões no cine Tivoli evocadas pelo meu pai, já nĂŁo se distingue o que está em cima do que está em baixo, está tudo enredado, confuso, e, porĂ©m, reina uma misteriosa ordem, eis a democracia. Mas, de sĂşbito, desde há um par de anos, parece desenhar-se uma ordem mais explĂcita, menos insidiosa. A nova ordem Ă© bem visĂvel, com os nĂveis superior e inferior bem definidos: alguns transportam com orgulho sacos repletos de compras e cumprimentam sorridentes os vizinhos Ă porta do centro comercial, outros remexem nos contentores onde os empregados do hipermercado lançaram as embalagens de carne fora de prazo, a fruta e as verduras pisadas, os pastĂ©is industriais caducados. Lutam entre si por esses alimentos.
(…) Trivial, a luta de classes? EntĂŁo nĂŁo era isso que determinava, que impregnava e condicionava tudo? O grande motor da histĂłria universal? NĂŁo era nisso que acreditavam o meu pai e os seus camaradas,