Saber Lidar com as Injúrias
Se o próprio Epicuro, que tanto cedeu ao corpo, se insurgiu contra as injúrias, porque hão-de nos parecer estas coisas incríveis ou sobre-humanas? Epicuro disse que, para o sábio, as injúrias são toleráveis; nós dizemos que, para o sábio, não há injúrias. E não digas que isto é estar em desacordo com a natureza: não negamos que seja desagradável ser fustigado, agredido ou ficar privado de um membro, mas negamos que estas coisas sejam injúrias; não contestamos o carácter doloroso, mas sim o nome de «injúria», o qual não podemos aceitar sem faltar à virtude. Veremos qual das duas doutrinas é mais verdadeira; mas, de qualquer forma, ambas desprezam a injúria.
Queres saber qual a diferença entre elas? É a mesma que existe entre dois gladiadores intrépidos: um que comprime a ferida e mantém-se em posição, o outro, virando-se para o público clamoroso, faz sinal de que nada se passou e pede para que não se pare o combate. Não julgues que aquilo em que discordamos é importante: no que diz respeito ao ponto principal, que é aquele que nos interessa, as duas doutrinas encorajam a desprezar as injúrias e o que eu chamaria sombras das injúrias e suspeições,
Textos sobre Pontos de Séneca
19 resultadosA Única Qualidade Específica do Homem
Esforça-te por que não te suceda o mesmo que a mim: começar os estudos na velhice. E esforça-te tanto mais quanto enveredaste por um estudo que dificilmente chegarás a dominar mesmo na velhice. «Até que ponto poderei progredir?» – perguntas-me. Até ao ponto onde chegarem os teus esforços. De que estás à espera? O saber não se obtém por obra do acaso. O dinheiro pode cair-te em sorte, as honras serem-te oferecidas, os favores e os altos cargos poderão talvez acumular-se sobre ti: a virtude, essa, não virá ter contigo! Não é sem custo, sem grandes esforços, que chegamos a conhecê-la; mas vale bem a pena o esforço, porquanto de uma só vez se obtêm todos os bens possíveis. De facto, o único bem é aquele que é conforme à moral; nos valores aceites pela opinião comum não encontrarás a mínima parcela de verdade ou de certeza.
(…) Cada coisa é avaliada por uma qualidade específica. O valor da videira está na sua produtividade, o do vinho no seu sabor, o do veado na sua rapidez; o que nos interessa nas bestas de carga é a sua força, pois elas apenas servem para isso mesmo: transportar carga. Num cão a primeira qualidade é o faro,
O Ponto mais Alto da Moral Consiste na Gratidão
O ponto mais alto da moral consiste na gratidão. E esta verdade proclamá-la-ão todas as cidades, todos os povos, mesmo os oriundos das regiões bárbaras, neste ponto estão de acordo os bons e os maus. Haverá quem aprecie sobretudo o prazer, outros haverá que julguem preferível o esforço activo; uns consideram a dor como o sumo mal, para outros a dor não será sequer um mal; alguns incluirão a riqueza no sumo bem, outros dirão que a riqueza foi inventada para o mal da humanidade e que o homem mais rico é aquele a quem a fortuna nada encontra para dar; no meio desta diversidade de posições uma coisa há que todos afirmarão, como soe dizer-se, a uma só voz: que devemos gratidão àqueles que nos favorecem. Neste ponto toda esta multidão de opiniões se mostra de acordo, mesmo quando por vezes pagamos favores com injúrias; e a primeira causa de ingratidão é não podermos ser suficientemente gratos. A insensatez chegou ao ponto de se tornar perigosíssimo fazer um grande benefício a alguém; como se considera uma vergonha não pagar o benefício, julga-se preferível não existir ninguém que no-lo faça! Goza em paz o que de mim recebeste; não to reclamo,
A Alma é o Bem Supremo
Devemos circunscrever o bem supremo à alma: degradá-lo-emos se em vez da melhor parte de nós o associarmos antes à pior, se o pusermos na dependência dos sentidos que nos animais sem fala são bem mais apurados do que no homem. Não devemos atribuir ao corpo o ponto mais alto da nossa felicidade; os bens verdadeiros são aqueles que devemos à razão – bens firmes e duradouros, insusceptíveis de decadência, incapazes de padecerem qualquer decréscimo ou limitação! Os restantes bens são-no somente na opinião do vulgo; na realidade apenas têm de comum o nome com os bens verdadeiros, mas carecem das propriedades que distinguem um «bem» real. Chamemos-lhes antes «utilidades» ou, para usar o termo técnico, «recursos desejáveis», mas sem perder de vista que se trata de «utensílios», não de partes de nós mesmos; tenhamo-los à mão, mas sem esquecer que são exteriores a nós; e mesmo tendo-os à mão atribuamos-lhes um lugar subalterno e secundário, como coisas de que ninguém se deve orgulhar. Há coisa mais estúpida do que nos vangloriarmos de algo que não fizemos? Deixemos que todos esses falsos bens nos caibam em sorte mas sem se colarem a nós de modo a que, se ficarmos sem eles,
Deixa o que Seduz a Multidão
Se nós nada fizermos senão de acordo com os ditames da razão, também nada evitaremos senão de acordo com os ditames da razão. Se quiseres escutar a razão, eis o que ela te dirá: deixa de uma vez por todas tudo quanto seduz a multidão! Deixa a riqueza, deixa os perigos e os fardos de ser rico; deixa os prazeres, do corpo e do espírito, que só servem para amolecer as energias; deixa a ambição que não passa de uma coisa artificialmente empolada, inútil, inconsciente, incapaz de reconhecer limites, tão interessada em não ter superiores como em evitar até os iguais, sempre torturada pela inveja, e uma inveja ainda por cima dupla. Vê como de facto é infeliz quem, objecto de inveja ele próprio, tem inveja por outros.
Não estás a ver essas casas dos grandes senhores, as suas portas cheias de clientes que se atropelam na entrada? Para lá entrares, teria de sujeitar-te a inúmeras injúrias, mas mais ainda terias de suportar se entrasses. Passa frente às escadarias dos ricos senhores, aos seus átrios suspensos como terraços: se lá puseres os pés será como estares à beira de uma escarpa, e de uma escarpa prestes a ruir. Dirige ante os teus passos na via da sapiência,
A Velocidade do Tempo é Infinita
A velocidade do tempo é infinita, e só quando olhamos para o passado, é que temos consciência disso. O tempo ilude quem se aplica ao momento presente, de tal modo é insensível a passagem do seu curso vertiginoso. Queres saber porquê? Porque todo o tempo passado se acumula num mesmo lugar; todo o passado é contemplado em bloco, forma uma totalidade; todo ele se precipita no mesmo abismo. De resto, não é possível delimitar grandes intervalos nesta nossa vida tão breve. A existência humana é um ponto, é menos que um ponto. Só por troça é que a natureza deu a tão diminuta existência a aparência de uma grande duração, dividindo-a em infância, em adolescência, em juventude, em período de transição da juventude à velhice, finalmente em velhice. Tantos períodos num tão exíguo espaço de tempo!
(…) Habitualmente não me parecia tão veloz a passagem do tempo; agora, porém, parece-me incrivelmente rápida, talvez porque sinto aproximar-se o fim, talvez porque passei a dar-lhe atenção e a avaliar o desgaste que em mim provoca.
Por isso mesmo me causa indignação ver como as pessoas gastam em futilidades a maior parte de uma vida que, mesmo dispendida com a maior parcimónia,
A Felicidade é Modesta e não Ambiciosa
Aqui tens o que posso dizer-te constantemente, a matéria que poderei estar sempre a debater, pois ambos vemos à nossa roda inúmeros milhares de pessoas inquietas que, a fim de obterem algo de altamente nocivo, andam com perseverança a praticar o mal, sempre à procura de coisas que logo a seguir deixam de lhes interessar, ou mesmo as enchem de repulsa! Já viste alguém contentar-se com uma coisa que, antes de a obter, lhe parecia mais que suficiente? A felicidade, ao contrário da opinião corrente, não é ambiciosa, mas sim modesta, e por isso mesmo nunca sacia ninguém. Tu pensas que aquilo que satisfaz o vulgo é elevado porque ainda estás longe da perfeição estóica; para quem a alcançou, tudo isso é absolutamente rasteiro! Minto: para quem começou a subir até esse nível, pois o ponto que tu pensas ser já o mais alto não passa de um degrau. Toda a gente é infelizmente confundida pela ignorância da verdade. Enganada pela opinião vulgar, procura como se fossem bens certas coisas que, depois de muito penar para as conseguir, verifica serem nocivas, inúteis ou inferiores ao que esperava. A maior parte das pessoas sente admiração por coisas que só ao fim de algum tempo se revelam ilusórias;
A Felicidade na Perseverança
Meu bem-amado Lucílio, conjuro-te a tomar o único partido que pode garantir a felicidade. Dispersa e pisoteia os esplendores de fora, as suas promessas, os seus lucros; volta o olhar para o vero bem; sê feliz mercê do teu próprio cabedal. Qual é esse cabedal? Tu mesmo, e a melhor parte de ti. Este pobre corpo esforça-se por ser nosso colaborador indispensável; considera-o antes um objecto necessário do que importante. Ele procura os prazeres vãos, breves, seguidos de descontentamento e destinados, se uma grande moderação não os tempera, a passarem para o estado oposto. Sim, sim, o prazer está à beira de um declive: inclina-se para o sofrimento quando deixa de observar o justo limite. Ora, observar tal limite é difícil em relação àquilo que se acreditou fosse um bem. O ávido desejo do verdadeiro bem não oferece risco algum.
Em que consiste o verdadeiro bem – quereis saber – e qual é a fonte de onde emana?Eu to direi: é a boa consciência, as intenções virtuosas, as rectas acções, o desprezo pelos eventos fortuitos, o desenvolvimento tranquilo e regular de uma existência que anda por um só caminho. Quanto a esses homens que vão de desejo em desejo,
Prazer com Virtude
Que dizer do facto de tanto os homens bons como os maus terem prazer, e de os homens infames terem tanto gosto em cometer actos vergonhosos como os homens honestos têm nas suas acções excelentes? É por isso que os antigos prescreveram que se procurasse a vida melhor, não a mais agradável, de forma a que o prazer fosse, não o guia, mas um companheiro da vontade recta e boa. Na verdade, a natureza deve ser o nosso guia: a razão observa-a e consulta-a. Por isso, viver feliz é o mesmo que viver de acordo com a natureza. Passo a explicar o que quer isto dizer: se conservarmos os nossos dons corporais e as nossas aptidões naturais com diligência, mas também com impavidez, tomando-os como bens efémeros e fugazes; se não nos tornarmos servos deles, nem nos submetermos a coisas exteriores; se as coisas que são circunstanciais e agradáveis ao corpo forem para nós como auxiliares e tropas ligeiras num castro (que obedecem, não comandam); nesta medida, todas estas coisas serão úteis à mente.
Não se deixe o homem corromper pelas coisas externas e inalcançáveis, e admire-se apenas a si próprio, confiando no seu ânimo e mantendo-se preparado para tudo,
A Felicidade de uma Razão Perfeita
Creio que estaremos de acordo em que é para proveito do corpo que procuramos os bens exteriores; em que apenas cuidamos do corpo para benefício da alma, e em que na alma há uma parte meramente auxiliar – a que nos assegura a locomoção e a alimentação – da qual dispomos tão somente para serviço do elemento essencial. No elemento essencial da alma há uma parte irracional e outra racional; a primeira está ao serviço da segunda; esta não tem qualquer ponto de referência além de si própria, pelo contrário, serve ela de ponto de referência a tudo. Também a razão divina governa tudo quanto existe sem a nada estar sujeita; o mesmo se passa com a nossa razão, que, aliás, provém daquela.
Se estamos de acordo nesse ponto, estaremos necessariamente também de acordo em que a nossa felicidade depende exclusivamente de termos em nós uma razão perfeita, pois apenas esta impede em nós o abatimento e resiste à fortuna; seja qual for a sua situação, ela manter-se-á imperturbável. O único bem autêntico é aquele que nunca se deteriora.
O homem feliz, insisto, é aquele que nenhuma circunstância inferioriza; que permanece no cume sem outro apoio além de si mesmo,
O Valor do Tempo
Fico sempre surpreendido quando vejo algumas pessoas a exigir o tempo dos outros e a conseguir uma resposta tão servil. Ambos os lados têm em vista a razão pela qual o tempo é solicitado e nenhum encara o tempo em si – como se nada estivesse a ser pedido e nada a ser dado. Estão a esbanjar o mais precioso bem da vida, sendo enganados por ser uma coisa intangível, não aberta à inspecção, e, portanto, considerada muito barata – de facto, quase sem qualquer valor. As pessoas ficam encantadas por aceitar pensões e favores, pelos quais empenham o seu labor, apoio ou serviços. Mas ninguém percebe o valor do tempo; os homens usam-no descontraidamente como se nada custasse.
Mas se a morte ameaça estas mesmas pessoas, vê-las-ás a recorrer aos seus médicos; se estiverem com medo do castigo capital, vê-las-ás preparadas para gastarem tudo o que têm para se manterem vivas. Tão inconsistentes são nos seus sentimentos! Mas se cada um de nós pudesse ter um vislumbre dos seus anos futuros, como podemos fazer em relação aos anos passados, como ficariam alarmados os que só podem ver com alguns anos de antecedência e como seriam cuidadosos a utilizá-los!
A Moralidade Pública Degradada
As crianças ficam todas contentes quando encontram na praia alguns calhaus coloridos; nós preferimos enormes colunas variegadas, importadas das areias do Egipto ou dos desertos do Norte de África para a construção de algum pórtico ou de um salão de banquetes com capacidade para uma multidão. Olhamos com admiração paredes recobertas de placas de mármore, embora cientes do material que lá está por baixo. Iludimos os nossos próprios olhos: quando recobrimos os tectos a ouro o que fazemos senão deleitar-nos com uma mentira ? Sabemos bem que por baixo desse ouro se oculta reles madeira! Mas não são só as paredes ou os tectos que se recobrem de uma ligeira camada: também a felicidade destes aparentes grandes da nossa sociedade é uma felicidade «dourada»! Observa atentamente, e verás a corrupção que se esconde sob essa leve capa de dignidade. Desde que o dinheiro (que tanto atrai a atenção de inúmeros magistrados e juízes e tantos mesmo promove a magistrados e juízes!…), desde que o dinheiro, digo, começou a merecer honras, a honra autêntica começou a perder terreno; alternadamente vendedores ou objectos postos à venda, habitua-mo-nos a perguntar pela quantidade, e não pela qualidade das coisas. Somos boas pessoas por interesse,
A Felicidade não Tem Medida
Não duvidas de que a vida feliz seja o supremo bem; logo, se a vida possui o supremo bem, então é sumamente feliz. E tal como o supremo bem não pode receber qualquer acréscimo (o que haveria acima do supremo?!), também a vida feliz o não pode, pois a felicidade não existe sem o supremo bem. Repara: se disseres que alguém é “mais” feliz, tornarás possível que se diga também “muito mais”; e assim irás fazendo inúmeras gradações no supremo bem, quando por “sumo bem” eu entendo tudo o que não tem valor algum acima de si. Se alguém é menos feliz do que um outro, segue-se que preferirá a vida desse outro (por ser mais feliz) à sua própria; ora, um homem feliz não considera nada preferível à sua vida.
Qualquer destas duas situações é inaceitável: existir algo que o homem feliz preferiria ter em lugar daquilo que tem, ou não preferir ter algo que seja melhor do que aquilo que tem. De facto, quanto mais um homem é avisado, tanto mais se procurará chegar ao que há de melhor, e ambicionará alcançá-lo seja de que modo for. Ora, como pode ser feliz alguém que pode, que deve mesmo,
Quantos São os que Sabem Ser Donos de Si Próprios?
Apenas julgamos comprar aquilo que nos custa dinheiro, enquanto consideramos gratuito o que pagamos com a nossa própria pessoa. Coisas que não quereríamos comprar se em troca devêssemos dar a nossa casa, ou uma quinta de recreio, ou de rendimento, estamos inteiramente dispostos a obtê-las a troco de ansiedades e de perigos, para tal sacrificando a honra, a liberdade, o tempo. A tal ponto é verdade que a nada damos menos valor do que a nós próprios! Façamos, portanto, em todas as nossas decisões e actos, o mesmo que fazemos ao abordar qualquer vendedor: perguntemos o preço da mercadoria que desejamos.
Frequentemente pagamos ao mais alto preço algo por que nada deveríamos dar. Posso indicar-te muitos bens cuja aquisição, mesmo por oferta, nos custa a liberdade: seríamos donos de nós próprios se não fôssemos possuidores de tais bens.
Deves meditar no que te digo, quer se trate de lucros quer de despesas. «Este objecto vai estragar-se». Ora, é uma coisa exterior; tão facilmente passarás sem ela como passaste antes de a ter. Se tiveste esse objecto bastante tempo, perde-lo depois de saciado; se pouco tempo, perde-lo antes de te habituares a ele. «Ganharás menos dinheiro». E menos preocupações,
O Temor Combate-se com a Esperança
Não haverá razão para viver, nem termo para as nossas misérias, se fôr mister temer tudo quanto seja temível. Neste ponto, põe em acção a tua prudência; mercê da animosidade de espírito, repele inclusive o temor que te acomete de cara descoberta. Pelo menos, combate uma fraqueza com outra: tempera o receio com a esperança. Por certo que possa ser qualquer um dos riscos que tememos, é ainda mais certo que os nossos temores se apaziguam, quando as nossas esperanças nos enganam.
Estabelece equilíbrio, pois, entre a esperança e o temor; sempre que houver completa incerteza, inclina a balança em teu favor: crê no que te agrada. Mesmo que o temor reuna maior número de sufrágios, inclina-a sempre para o lado da esperança; deixa de afligir o coração, e figura-te, sem cessar, que a maior parte dos mortais, sem ser afectada, sem se ver seriamente ameaçada por mal algum, vive em permanente e confusa agitação. É que nenhum conserva o governo de si mesmo: deixa-se levar pelos impulsos, e não mantém o seu temor dentro de limites razoáveis. Nenhum diz:
– Autoridade vã, espírito vão: ou inventou, ou lho contaram.
Flutuamos ao mínimo sopro. De circunstâncias duvidosas,
Prazer não Significa Felicidade
Aqueles que disseram ser o prazer o sumo bem, viram bem a posição vergonhosa em que o colocaram. Negam eles também que a virtude possa ser separada do prazer e dizem que ninguém pode viver honestamente sem viver agradavelmente, tal como ninguém pode viver agradavelmente sem viver honestamente. Não vejo como elementos tão diversos podem ser postos lado a lado. Porque não se poderá, pergunto-vos, separar a virtude do prazer? Visto que o princípio de todo o bem é a virtude, será ela também a raiz de tudo o que vós amais e desejais? Todavia, se a virtude e o prazer não fossem coisas distintas, não se compreenderia por que razão há umas coisas que são agradáveis, mas desonestas, e outras que são honestíssimas, mas penosas e causadoras de sofrimento.
Acrescenta ainda que, enquanto o prazer se coaduna com uma vida vergonhosa, a virtude não admite uma má vida, e quantos há que são infelizes não por não terem prazer, mas precisamente por causa do prazer, o que não aconteceria se conjugassem o prazer com a virtude, a qual existe muitas vezes sem ele, sem nunca precisar dele para existir.
Porquê confundir coisas tão diversas ou mesmo opostas?
A Justa Medida, sem Grandezas nem Excessos
Uma grande alma distingue-se por desprezar a grandeza, e por preferir a justa medida aos excessos, já que a primeira se limita ao que é útil e indispensável à vida, enquanto os últimos se tornam nocivos pelo próprio facto de serem supérfluos. É assim que a fertilidade excessiva prejudica as searas, os colmos partem-se com o peso e a demasiada abundância de grão não chega a amadurecer. O mesmo ocorre com as almas corroídas por um bem estar desmesurado, do qual usam em prejuízo não só dos outros como de si próprias. Nenhum inimigo inflingiu a alguém golpes tão duros como aqueles que certas pessoas sofrem ocasionados pelos próprios prazeres. Só uma coisa pode desculpar a imoderação, a louca voluptuosidade de tal gente: é que sofrem a consequência dos seus actos.
Não é sem razão, aliás, que uma tal loucura se apodera delas: o desejo de ultrapassar os limites naturais descamba necessariamente na desmesura. A necessidade natural tem o seu termo próprio, enquanto as necessidades artificiais derivadas do prazer nunca conhecem limitações. A utilidade serve de medida ao que é indispensável; mas por que padrão aferir o que é supérfluo? Por conseguinte, muitos afundam-se em prazeres sem os quais,
Sapiência Diversificada
Entre outras vantagens, a sabedoria também tem isto de bom: só se pode ser ultrapassado por outro durante a fase de ascenção. Quando se chega ao cume, não mais subsistem diferenças: a sabedoria é um estado constante, não passível de qualquer incremento. Acaso o Sol pode aumentar de tamanho ou a Lua sair da sua órbita? Os oceanos também não crescem; o mundo conserva sempre a sua forma e as suas medidas. Todos os seres que atingiram as suas dimensões ideais já não podem aumentar e, por isso, todos os homens que atingirem a sapiência são de valor inteiramente idêntico. De entre eles, cada um terá as suas qualidades próprias: um poderá ser mais afável, outro mais desembaraçado, outro de palavra mais pronta, outro dotado de maior eloquência. Mas o ponto que nos interessa – a sapiência que gera a beatitude – essa será igual em todos eles.
A Tranquilidade da Alma não se Alcança em Viagens
Pensas que só a ti isso sucedeu; admiras-te, como se fosse um caso raro, de após uma tão grande viagem e uma tão grande variedade de locais visitados não teres conseguido dissipar essa tristeza que te pesa na alma!? Deves é mudar de alma, não de clima. Ainda que atravesses a vastidão do mar, ainda que, como diz o nosso Vergílio, as costas, as cidades desapareçam no horizonte, os teus vícios seguir-te-ão onde quer que tu vás. Do mesmo se queixou um dia alguém a Sócrates: «Porquê admirar-te da inutilidade das tuas viagens,» – foi a resposta, – «se para todo o lado levas a mesma disposição? A causa que te aflige é exactamente a mesma que te leva a partir!» De facto, em que pode ajudar a mudança de local, ou o conhecimento de novas paisagens e cidades? Toda essa agitação carece de sentido. Andares de um lado para o outro não te ajuda em nada, porque andas sempre na tua própria companhia. Tens de alijar o peso que tens na alma; antes disso não há terra alguma que te possa dar prazer!
Temos de viver com essa convicção: não nascemos destinados a nenhum lugar particular, a nossa pátria é o mundo inteiro!