Pergunta e Interrogação
Uma pergunta não interroga: uma pergunta diz a resposta. Porque uma pergunta está do lado do problema a resolver, do ainda simplesmente desconhecido; e a interrogação está do lado do insondável. A pergunta desenvolve-se na clara horizontalidade; a interrogação, na obscura verticalidade.
Como em jogo de cabra-cega, em que há seres à nossa volta, a pergunta orienta-se entre os que lhe não pertencem até achar o que procura. Mas a interrogação não encontra, porque nada há para achar. O limite da sua esperança está menos no triunfo de um encontro, do que no cansaço, na resignação, ou na evidência natural do que nos coube, como nos é evidente e tranquilo o termos cinco sentidos e não mais. Mas até lá o caminho é longo e inimaginável na imobilidade desta noite. Verdadeiramente é única a sorte que nos visitou. Legaram-nos a tradição da pergunta-e-resposta como o passatempo de um jogo. Porque até mesmo o interrogar degenerou depressa em pergunta.
Textos sobre Problemas
189 resultadosCultura Ofuscada
Não é que, no nosso tempo, o representante da cultura seja menos escutado do que no passado o eram o teólogo, o artista, o sábio, o filósofo, etc. É que, actualmente, tem-se consciência da massa que vive de mera propaganda. Também no passado, as massas viviam de má propaganda, mas, então, sendo a cultura elementar menos difundida, essa massa não imitava as pessoas verdadeiramente cultas e, portanto, não fazia surgir o problema de saber se estava mais ou menos em concorrência com essas pessoas cultas.
O Homem não está à Altura da sua Obra
Dir-se-ia que a civilização moderna é incapaz de produzir uma elite dotada simultaneamente de imaginação, de inteligência e de coragem. Em quase todos os países se verifica uma diminuição do calibre intelectual e moral naqueles a quem cabe a responsabilização da direcção dos assuntos políticos, económicos e sociais. As organizações financeiras, industriais e comerciais atingiram dimensões gigantescas. São influenciadas não só pelas condições do país em que nasceram, mas também pelo estado dos países vizinhos e de todo o mundo. Em todas as nações produzem-se modificações sociais com grande rapidez. Em quase toda a parte se põe em causa o valor do regime político. As grandes democracias enfrentam problemas temíveis que dizem respeito à sua própria existência e cuja solução é urgente. E apercebemo-nos de que, apesar das grandes esperanças que a humanidade depositou na civilização moderna, esta civilização não foi capaz de desenvolver homens suficientemente inteligentes e audaciosos para a dirigirem na via perigosa por que a enveredou. Os seres humanos não cresceram tanto como as instituições criadas pelo seu cérebro. São sobretudo a fraqueza intelectual e moral dos chefes e a sua ignorância que põem em perigo a nossa civilização.
O Paradoxo da Liberdade
É porque eu sou a minha voz, é porque ela existe minha no instante em que a estou erguendo, que me escapa a sua intelecção. E todo o equívoco do problema da liberdade está aí. Porque a liberdade experimenta-se e nada a pode demonstrar. Demonstrá-la exigiria que estivéssemos fora de nós, porque na própria demonstração estamos sendo o homem livre cuja liberdade desejávamos provar. Assim essa tentativa, como disse, é tão absurda como pretender a intelecção de uma língua fora de uma qualquer língua. Porque enquanto entendo uma língua, estou sendo aquela língua dentro da qual estou entendendo a outra. Quanto estou tentando entender a minha liberdade estou sendo quem sou na intelecção disso que sou. Eis-nos pois remetidos para o limiar de nós próprios, para o absoluto da escolha antes da escolha, para a identidade incompreensível entre o ser que é o nosso e a escolha desse ser.
Que tem que fazer aqui a razão? Somos livres, como sabemos na consciente vivência do acto de ser consciente. Somos livres, como o sabemos da possibilidade de se ser e de se saber que se é, da infinita e infinitesimal diferença entre mim e mim, entre ser-se o que se é e o saber-se que se é esse ser,
A História do Romance não é «apenas» a história do romance
A discussão sobre um romance é arriscada e limitada quando parte de um canône puramente estético. Porque não é um canône estético a ter em conta: é um canône de vida. Uma obra de arte julga-se em função do que o autor oretende – não do que pretendemos nós. Se queremos pô-la em causa, discutamos a pretensão antes do que ela realizou. Assim é pouco eficaz a discussão do «novo romance» francês antes de nos perguntarmos porque é que tomou tal caminho. Porque tal caminho implica uma negação radical (em alguns escritores, pelo menos) dos valores da inteligibilidade, da coerência, do próprio homem enfim. A história da «personagem», como certos críticos, aliás, já frisaram, tem agora o seu trágico remate na destruição dessa mesma personagem. Mas que a negação de um significado para a presença do homem no mundo que o rodeia é uma negação paradoxal, prova-o não apenas o facto de o romancista ordenar a visão do mundo «nessa» perspectiva (e essa é uma contradição, como o é o cepticismo absoluto) como o prova ainda a obra de certos romancistas (digamos a de um Butor, na anotação de um Merleau-Ponty) para quem o «objecto» se impregna da presença do homem.
O que é Portugal?
Que é, ou quem é, Portugal? Uma Cultura? Uma História? Um Adormecido Inquieto? Por que é que, quando se fala de Portugal, sempre hão-de ser invocadas a sua história e a sua cultura? Se estivermos a falar de outro país, a história e a cultura dele só serão chamadas à conversa se forem esses os temas em debate. Talvez que esta necessidade de apelarmos constantemente para a história e para a cultura portuguesas provenha de um certo carácter inconclusivo (não no sentido que sempre será o de um qualquer processo contínuo, mas no sentido de uma permanente «suspensão») que ambas parecem apresentar. Da história de Portugal sempre nos dá vontade de perguntar: porquê? Da cultura portuguesa: para quê? De Portugal, ele próprio: para quando? Ou: até quando? Se estas interrogações não são gratuitas, se, pelo contrário, exprimem, como creio, um sentimento de perplexidade nacional, então os nossos problemas são muito sérios.
O Que Sou e o Que Faço Neste Mundo
Involuntariamente, inconscientemente, nas leituras, nas conversas e até junto das pessoas que o rodeavam, procurava uma relação qualquer com o problema que o preocupava. Um ponto o preocupava acima de tudo: por que é que os homens da sua idade e do seu meio, os quais exactamente como ele, pela sua maior parte, haviam substituído a fé pela ciência, não sofriam por isso mesmo moralmente? Não seriam sinceros? Ou compreendiam melhor do que ele as respostas que a ciência proporciona a essas questões perturbadoras? E punha-se então a estudar, quer os homens, quer os livros, que poderiam proporcionar-lhe as soluções tão desejadas.
(…) Atormentado constantemente por estes pensamentos, lia e meditava, mas o objectivo perseguido cada vez se afastava mais dele. Convencido de que os materialistas nenhuma resposta lhe dariam, relera, nos últimos tempos da sua estada em Moscovo, e depois do seu regresso à aldeia, Platão e Espinosa, Kant e Schelling, Hegel e Schopenhauer. Estes filósofos satisfaziam-no enquanto se contentavam em refutar as doutrinas materialistas e ele próprio encontrava então argumentos novos contra elas; mas, assim que abordava – quer através das leituras das suas obras, quer através dos raciocínios que estas lhe inspiravam – a solução do famoso problema,
A Luta para a Supressão Radical das Guerras
A minha participação na produção da bomba atómica consistiu numa única acção: assinei uma carta dirigida ao presidente Roosevelt, na qual se sublinhava a necessidade de levar a cabo experiências em grande escala, para investigação das possibilidades de produção duma bomba atómica.
Tive bem consciência do grande perigo que significava para a Humanidade o êxito desse empreendimento. Mas a probabilidade de que os Alemães trabalhassem no mesmo problema e fossem bem sucedidos, obrigou-me a dar este passo. Não tinha outra solução, embora tivesse sido sempre um pacifista convicto. Foi, portanto, uma reacção de legítima defesa.
Enquanto, porém, as nações não estiverem resolvidas a trabalhar em comum para suprimir a guerra, a resolverem os seus conflitos por decisão pacífica e a protegerem os seus interesses de maneira legal, vêem-se obrigadas a preparar-se para a guerra. Vêem-se, mais, obrigadas a preparar todos os meios, mesmo os mais detestáveis, para não se deixarem ficar para trás, na corrida geral aos armamentos. Este caminho conduz fatalmente à guerra que, nas condições actuais, significa destruição geral.
Nestas condições, a luta contra os meios não tem probabilidades de êxito. Só ainda pode valer a supressão radical das guerras e do perigo de guerra.
Sonhar é Preciso
Sem sonhos, as pedras do caminho tornam-se montanhas, os pequenos problemas são insuperáveis, as perdas são insuportáveis, as decepções transformam-se em golpes fatais e os desafios em fonte de medo.
Voltaire disse que os sonhos e a esperança nos foram dados como compensação às dificuldades da vida. Mas precisamos de compreender que os sonhos não são desejos superficiais. Os sonhos são bússolas do coração, são projectos de vida. Os desejos não suportam o calor das dificuldades. Os sonhos resistem às mais altas temperaturas dos problemas. Renovam a esperança quando o mundo desaba sobre nós.John F. Kennedy disse que precisamos de seres humanos que sonhem o que nunca foram. Tem fundamento o seu pensamento, pois os sonhos abrem as janelas da mente, arejam a emoção e produzem um agradável romance com a vida.
Quem não vive um romance com a sua vida será um miserável no território da emoção, ainda que habite em mansões, tenha carros luxuosos, viaje em primeira classe nos aviões e seja aplaudido pelo mundo.Precisamos de perseguir os nossos mais belos sonhos. Desistir é uma palavra que tem de ser eliminada do dicionário de quem sonha e deseja conquistar, ainda que nem todas as metas sejam atingidas.
Fazer os Sonhos Levantarem Voo
Alguns sonhos são belos, outros poéticos; uns realizáveis, outros difíceis de serem concretizados; uns envolvem uma pessoa, outros, a sociedade; uns possuem rotas claras, outros, curvas imprevisíveis; uns são rapidamente produzidos, outros precisam de anos de maturação.
Há muitos tipos de sonhos. Sonho de se apaixonar por alguém, de gerar filhos ou conquistar amigos. Sonho de tirar um curso, ter uma empresa, ter sucesso financeiro para si e para ajudar os outros. Sonho de ter saúde física e psíquica, de ter paz interior e de viver intensamente cada momento da vida.
Sonho de ser um cientista, um médico, um educador, um empresário, um empreendedor, um profissional que faça a diferença. Sonho de viajar pelo mundo, de pintar quadros, escrever um livro, ser útil ao próximo. Sonho de aprender a tocar um instrumento, praticar desportos, bater recordes.Muitos enterram os seus sonhos nos escombros dos seus problemas. Alguns soldados nunca mais foram motivados para a vida depois de verem os seus colegas morrerem em combate.
Alguns oradores nunca mais recuperaram a sua segurança depois de terem um ataque de pânico em público. Alguns desportistas não conseguiram repetir a sua performance depois de fazerem uma cirurgia correctiva ou serem apanhados no controlo antidoping.
Amor e Intimidade
Toda a gente tem medo da intimidade — ter ou não ter consciência desse medo é outra história. A intimidade significa expor-se perante um estranho — e todos nós somos estranhos; ninguém conhece ninguém. Somos mesmo estranhos a nós próprios, porque não sabemos quem somos.
A intimidade aproxima-o de um estranho. Tem de deixar cair todas as suas defesas; só assim a intimidade é possível. E o seu medo é que se deixar cair todas as suas defesas, todas as suas máscaras, quem sabe o que o estranho lhe poderá fazer. Todos nós andamos a esconder mil e uma coisas, não só dos outros mas de nós próprios, porque fomos criados por uma humanidade doente com toda a espécie de repressões, inibições e tabus. E o medo é que, com alguém que seja um estranho — e não importa se se viveu com a pessoa durante trinta ou quarenta anos; a estranheza nunca desaparece —, parece mais seguro manter uma ligeira defesa, uma pequena distância, porque alguém se poderá aproveitar das suas fraquezas, da sua fragilidade, da sua vulnerabilidade.
Toda a gente tem medo da intimidade. O problema torna-se mais complicado porque toda a gente quer intimidade. Toda a gente quer intimidade porque,
Nós Trazemos na Alma uma Bomba
A causa depois do efeito. A minha tese é esta, minha querida – nós trazemos na alma uma bomba e o problema está em alguém fazer lume para a rebentar. Nós escolhemos ser santos ou heróis ou traidores ou cobardes e assim. O problema está em vir a haver ou não uma oportunidade para isso se manifestar. Nós fizemos uma escolha na eternidade. Mas quantos sabem o que escolheram? Alguns têm a sorte ou a desgraça de alguém fazer lume para rebentarem o que são, ver-se o que estava por baixo do que estava por cima. Mas outros vão para a cova na ignorância. Às vezes fazem ensaios porque a pressão interior é muito forte. Ou passam a vida à espera de um sinal, um indício elucidativo. Ou passam-na sem saberem que trazem a bomba na alma que às vezes ainda rebenta, mesmo já no cemitério. Ou quem diz bomba diz por exemplo uma flor para pormos num sorriso. Ou um penso para pormos num lanho. Mas não sabem.
Ajuda entre Sábios
Estás interessado em saber se um sábio pode ser útil a outro sábio. Nós definimos o sábio como um homem dotado de todos os bens no mais alto grau possível. A questão está pois em saber como é possível alguém ser útil a quem já atingiu o supremo bem. Ora, os homens de bem são úteis uns aos outros. A sua função é praticar a virtude e manter a sabedoria num estado de perfeito equilíbrio. Mas cada um necessita de outro homem de bem com quem troque impressões e discuta os problemas. A perícia na luta só se adquire com a prática; dois músicos aproveitam melhor se estudarem em conjunto. O sábio necessita igualmente de manter as suas virtudes em actividade e, por isso mesmo, não só se estimula a si próprio como se sente estimulado por outro sábio. Em que pode um sábio ser útil a outro sábio? Pode servir-lhe de incitamento, pode sugerir-lhe oportunidades para a prática de acções virtuosas. Além disso, pode comunicar-lhe as suas meditações e dar-lhe conta das suas descobertas. Nunca faltará mesmo ao sábio algo de novo a descobrir, algo que dê ao seu espírito novos campos a explorar.
Os indivíduos perversos fazem mal uns aos outros,
Todo o Passado é um Erro para cada um de Nós
No fundo, todo o passado é um erro para cada um de nós. E como ninguém é capaz de aceitar corajosamente os erros e de fazer deles um roteiro de sinceridade, contorna-se o problema desta ingénua maneira: recomeçar. Sem nos querermos convencer de que nada pode deixar de ser como é, porque continuamos os mesmos e, só errado, o caminho é bonito e nos apetece.
O Bem Supremo
Muito discutiu a antiguidade em torno do supremo bem. O que é o supremo bem? Seria o mesmo que perguntar o que é o supremo azul, o supremo acepipe, o supremo andar, o ler supremo, etc. Cada um põe a felicidade onde pode, e quanto pode ao seu gosto. (…) Sumo bem é o bem que vos deleita a ponto de nos polarizar toda a sensibilidade, assim como mal supremo é aquele que vos torna completamente insensível. Eis os dois pólos da natureza humana. Esses dois momentos são curtos. Não existem deleites extremos nem extremos tormentos capazes de durar a vida inteira. Supremo bem e supremo mal são quimeras.Conhecemos a bela fábula de Crântor, que fez comparecer aos jogos olímpicos a Fortuna, a Volúpia, a Saúde e a Virtude.
Fortuna: – O sumo bem sou eu, pois comigo tudo se obtém.
Volúpia: – Meu é o pomo, porquanto não se aspira à riqueza senão para ter-me a mim.
Saúde: – Sem mim não há volúpia e a riqueza seria inútil.
Virtude: – Acima da riqueza, da volúpia e da saúde estou eu, que embora com ouro, prazeres e saúde pode haver infelicidade, se não há virtude.
O Homem é o Animal Menos Preparado
A capacidade do homem para o pensamento abstracto, que parece faltar à maioria dos outros mamíferos, conferiu-lhe sem dúvida o seu actual domínio sobre a superfície da Terra – um domínio disputado apenas por centenas de milhares de tipos de insectos e organismos microscópicos. Este pensamento abstracto é o responsável pela sua sensação de superioridade e pelo que, sob esta sensação, corresponde a uma certa medida de realidade, pelo menos dentro de estreitos limites. Mas o que é frequentemente subestimado é o facto de que a capacidade de desempenhar um acto não é, de forma alguma, sinónima de seu exercício salubre. É fácil observar que a maior parte do pensamento do homem é estúpida, sem sentido e injuriosa para ele. Na realidade, de todos os animais, ele parece o menos preparado para tirar conclusões apropriadas nas questões que afectam mais desesperadamente o seu bem-estar.
Tente imaginar um rato, no universo das ideias dos ratos, chegando a noções tão ocas de plausibilidade como, por exemplo, o Swedenborgianismo, a homeopatia ou a telepatia mental. O instinto natural do homem, de facto, nunca se dirige para o que é sólido e verdadeiro; prefere tudo que é especioso e falso. Se uma grande nação moderna se confrontar com dois problemas antagónicos – um deles baseado em argumentos prováveis e racionais,
Dizer Mal dos Outros, Ouvir Falar Mal de Nós
Uma das formas mais universais de irracionalidade é a atitude tomada por quase toda a gente em relação às conversas maldizentes. Muito poucas pessoas sabem resistir à tentação de dizer mal dos seus conhecimentos e mesmo, se a ocasião se proporciona, dos seus amigos; no entanto, quando sabem que alguma coisa foi dita em seu desabono, enchem-se de espanto e indignação. Certamente nunca lhes ocorreu ao espírito que da mesma forma que dizem mal de não importa quem, alguém possa dizer mal deles. Esta é uma forma atenuada da atitude que, quando exagerada, conduz à mania da perseguição.
Exigimos de toda a gente o mesmo sentimento de amor e de profundo respeito que sentimos por nós próprios. Nunca nos ocorre que não devemos exigir que os outros pensem melhor de nós do que nós pensamos a respeito deles e não nos ocorre porque aos nossos olhos os méritos são grandes e evidentes ao passo que os dos outros, se na realidade existem, só são reconhecidos com certa benevolência. Quando o leitor ouve dizer que alguém disse qualquer coisa desprimorosa a seu respeito, lembra-se logo das noventa e nove vezes que reprimiu o desejo de exprimir, sobre esse alguém, a crítica que considerava justa e merecida,
É por ter Espírito que me Aborreço
É preciso esconjurar, da forma que nos for possível, este diabo de vida que não sei porque é que nos foi dada e que se torna tão facilmente amarga se não opusermos ao tédio e aos aborrecimentos uma vontade de ferro. É preciso, numa palavra, agitar este corpo e este espírito que se delapidam um ao outro na estagnação e numa indolência que se confunde com um torpor. É preciso passar, necessariamente, do descanso ao trabalho – e reciprocamente: só assim estes parecerão, ao mesmo tempo, agradáveis e salutares. Um desgraçado que trabalhe sem cessar, sob o peso de tarefas inadiáveis, deve ser, sem dúvida, extremamente infeliz, mas um indivíduo que não faça mais do que divertir-se não encontrará nas suas distracções nem prazer nem tranquilidade; sente que luta contra o tédio e que este o prende pelos cabelos – como se fosse um fantasma que se colocasse sempre por detrás de cada distracção e espreitasse por cima do nosso ombro.
Não julgue, cara amiga, que eu só porque trabalho regularmente estou isento das investidas deste terrível inimigo; penso que, quando se tem uma certa disposição de espírito, é preciso termos uma imensa energia de forma a não nos deixarmos absorver e conseguir escapar,
Falar com Coração
Não é possível dominares as palavras nem, por exemplo, uma qualquer audiência que tenhas à frente se não tiveres um total e absoluto conhecimento a teu próprio respeito, se não confiares em ti e se não tiveres como hábito dar voz aos teus sentidos. Vai sempre soar a falso. Não é possível agarrares uma plateia nem mexer com as emoções de quem te ouve se não te vulnerabilizares, se não te assumires como o ser humano que és e se tudo o que disseres já tiver sido dito por outros. Vais fazer figura de parvo. E não esperes nunca sensibilizar ou gerar identificação em alguém se não falares sobre ti mesmo, se não te expuseres ao erro e se não partilhares o segredo que tu próprio desvendaste para superar um qualquer problema. Vais ver as pessoas a bocejar. As pessoas precisam de saber que não são as únicas a ter problemas por resolver, que há mais gente em busca de si mesma, com crises existenciais e que errar é, afinal, absolutamente humano, assim como desvendar soluções para tudo. É isso que gera identificação, é isso que fortalece os laços entre as pessoas e é isso que te torna num bom comunicador.
Só um Mundo de Amor pode Durar a Vida Inteira
Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.
O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixonade verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em “diálogo”. O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios.Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões.