A ViolĂȘncia Oculta
A primeira razĂŁo por que a violĂȘncia maior actua de modo silencioso, e das poucas vezes que falamos dela falamos apenas da ponta do icebergue. NĂłs acreditamos que estamos perante fenĂłmenos de violĂȘncia apenas quando essa tensĂŁo assume proporçÔes visĂveis, quando ela surge como espectĂĄculo mediĂĄtico. Mas esquecemos que existem formas de violĂȘncia oculta que sĂŁo gravĂssimas. Esquecemos, por exemplo, que todos os dias, no nosso paĂs, sĂŁo sexualmente violentadas crianças. E que, na maior parte das vezes, os agressores nĂŁo sĂŁo estranhos. Quem viola essas crianças sĂŁo principalmente parentes. Quem pratica esse crime Ă© gente da prĂłpria casa.
NĂłs temos nĂveis altĂssimos de violĂȘncia domĂ©stica, em particular, de violĂȘncia contra a mulher. Mas esse assunto parece ser preocupação de poucos. Fala-se disso em algumas ONGs, em alguns seminĂĄrios. A Lei contra a violĂȘncia domĂ©stica ainda nĂŁo foi aprovada na Assembleia da RepĂșblica.
Existem vĂĄrias outras formas invisĂveis de violĂȘncia. Existe violĂȘncia quando os camponeses sĂŁo expulsos sumariamente das suas terras por gente poderosa e nĂŁo possuem meios para defender os seus direitos. Existe uma violĂȘncia contida quando, perante o agente corrupto da autoridade, nĂŁo nos surge outra saĂda senĂŁo o suborno. Existe, enfim, a violĂȘncia terrĂvel que Ă© o vivermos com medo.
Textos sobre RazĂŁo de Mia Couto
2 resultadosA Armadilha da Realidade
Uma das primeiras armadilhas interiores é aquilo que chamamos de «realidade». Falo, é claro, da ideia de realidade que actua como a grande fiscalizadora do nosso pensamento. O maior desafio é sermos capazes de não ficar aprisionados nesse recinto que uns chamam de «razão», outros de «bom-senso». A realidade é uma construção social e é, frequentemente, demasiado real para ser verdadeira. Nós não temos sempre que a levar tão a sério.
Quando Ho Chi Minh saiu da prisão e lhe perguntaram como conseguiu escrever versos tão cheios de ternura numa prisão tão desumana ele respondeu: «Eu desvalorizei as paredes.» Essa lição se converteu num lema da minha conduta.
Ho Chi Minh ensinou a si prĂłprio a ler para alĂ©m dos muros da prisĂŁo. Ensinar a ler Ă© sempre ensinar a transpor o imediato. Ă ensinar a escolher entre sentidos visĂveis e invisĂveis. E ensinar a pensar no sentido original da palavra «pensar» que significava «curar» ou «tratar» um ferimento. Temos de repensar o mundo no sentido terapĂȘutico de o salvar de doenças de que padece. Uma das prescriçÔes mĂ©dicas Ă© mantermos a habilidade da transcendĂȘncia, recusando ficar pelo que Ă© imediatamente perceptĂvel. Isso implica a aplicação de um medicamento chamado inquietação crĂtica.