Construir a Realidade
A pura verdade Ă© que no mundo acontece a todo instante, e, portanto, agora, infinidade de coisas. A pretensĂŁo de dizer o que Ă© que acontece agora no mundo deve ser entendida, pois, como ironizando-se a si mesma. Mas assim como Ă© impossĂvel conhecer directamente a plenitude do real, nĂŁo temos outro remĂ©dio senĂŁo construir arbitrariamente uma realidade, supor que as coisas sĂŁo de certa maneira. Isto proporciona-nos um esquema, quer dizer, um conceito ou entretecido de conceitos. Com ele, como atravĂ©s de uma quadrĂcula, olhamos depois a efectiva realidade, e entĂŁo, sĂł entĂŁo, conseguimos uma visĂŁo aproximada dela. Nisto consiste o mĂ©todo cientĂfico. Mais ainda: nisto consiste todo uso do intelecto. Quando ao ver chegar o nosso amigo pela vereda do jardim dizemos: «Este Ă© o Pedro», cometemos deliberadamente, ironicamente, um erro. Porque Pedro significa para nĂłs um esquemático repertĂłrio de modos de se comportar fĂsica e moralmente – o que chamamos «carácter» –, e a pura verdade Ă© que o nosso amigo Pedro nĂŁo se parece, em certos momentos, em quase nada Ă ideia «o nosso amigo Pedro».
Todo o conceito, o mais vulgar como o mais técnico, vai incluso na ironia de si mesmo, nos entredentes de um sorriso tranquilo,
Textos sobre Remédios de José Ortega y Gasset
2 resultadosInteligĂŞncia e Conhecimento nĂŁo Definem o Homem
Não se pode definir o homem pelos dotes ou meios com que conta, já que não está dito que esses dotes, esses meios, logrem o que os seus nomes pretendem, ou melhor, que sejam adequados à pavorosa lide em que, queira ou não, está. Dito de outro modo: o homem não se ocupa em conhecer, em saber, simplesmente porque tenha dons cognoscitivos, inteligência, etc. – mas ao contrário porque não tem outro remédio que intentar conhecer, saber, mobilizando os meios de que dispõe, embora estes sirvam muito mal para aquele mister. Se a inteligência humana fosse de verdade o que a palavra indica – capacidade de entender – o homem teria imediatamente entendido tudo e estaria sem nenhum problema, sem lide penosa pela frente.
NĂŁo está, pois, dito que a inteligĂŞncia do homem seja, com efeito, inteligĂŞncia; em troca, a lide em que o homem anda irremediavelmente metido, isso sim Ă© que Ă© indubitável – e, portanto, isso sim Ă© o que o define! Essa lide – segundo dissemos – chama-se «viver» e o viver consiste em que o homem está sempre em alguma circunstância, onde se acha de imediato e sem saber como, submerso, projectado num orbe ou contorno insubstituĂvel,