Textos sobre Senhores

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Textos de senhores escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

O Perigo do Especialista

O especialista serve-nos para concretizar energicamente a espécie e fazer ver todo o radicalismo da sua novidade. Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade; mas tampouco é um ignorante, porque é «um homem de ciência» e conhece muito bem a sua fracção de universo. Devemos dizer que é um sábio ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio.
E, com efeito, este é o comportamento do especialista. Em política, em arte, nos usos sociais, nas outras ciências tomará posições de primitivo, e ignorantíssimo; mas tomará essas posições com energia e suficiência, sem admitir – e isto é o paradoxal – especialistas dessas coisas. Ao especializá-lo a civilização tornou-o hermético e satisfeito dentro da sua limitação; mas essa mesma sensação íntima de domínio e valia vai levá-lo a querer predominar fora da sua especialidade.

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O Sentido de Possibilidade

Poderia definir-se o sentido de possibilidade como aquela capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser e de não dar mais importância àquilo que é do que àquilo que não é. Como se vê, as consequências desta disposição criadora podem ser notáveis; infelizmente, não é raro que façam aparecer como falso aquilo que as pessoas admiram e como lícito aquilo que elas proíbem, ou então as duas coisas como sendo indiferentes. Esses homens do possível vivem, como se costuma dizer, numa trama mais subtil, numa teia de névoa, fantasia, sonhos e conjuntivos; se uma criança mostra tendências destas, acaba-se firmemente com elas, e diz-se-lhe que tais pessoas são visionários, sonhadores, fracos, gente que tudo julga saber melhor e em tudo põe defeito.
Quando se quer elogiar estes loucos, chama-se-lhes também idealistas, mas é claro que com isso só se alude à sua natureza débil, incapaz de compreender a realidade, ou que a evita por melancolia, uma natureza na qual a falta do sentido de realidade é um verdadeiro defeito. O possível, porém, não abarca apenas os sonhos dos neurasténicos, mas também os desígnios ainda adormecidos de Deus. Uma experiência possível ou uma verdade possível não são iguais a uma experiência real e uma verdade real menos o valor da sua realidade,

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Ninguém é Feliz quando Treme pela sua Felicidade

Ninguém é feliz quando treme pela sua felicidade. Não se apoia em bases sólidas quem tira a sua satisfação de bens exteriores, pois acabará por perder o bem-estar que obteve. Pelo contrário, um bem que nasce dentro de nós é permanente e constante, e vai sempre crescendo até ao nosso último momento; todos os demais bens ante os quais se extasia o vulgo são bens efémeros. “E então? Quer isso dizer que são inúteis e não podem dar satisfação?” É evidente que não, mas apenas se tais bens estiverem na nossa dependência, e não nós na dependência deles. Tudo quanto cai sob a alçada da fortuna pode ser proveitoso e agradável na condição de o seu beneficiário ser senhor de si próprio em vez de ser servo das suas propriedades. É um erro pensar-se, Lucílio, que a fortuna nos concede o que quer que seja de bom ou de mau; ela apenas dá a matéria com que se faz o bom e o mau, dá-nos o material de coisas que, nas nossas mãos, se transformam em boas ou más.
O nosso espírito é mais poderoso do que toda a espécie de fortuna, ele é quem conduz a nossa vida no bom ou no mau sentido,

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A Mediocridade do Talento

Quem entre nós não tem talento? Mesmo aqueles que nada têm, têm talento até os políticos – até os jornalistas… Fique pois dito de uma vez para sempre: quem me disser que eu tenho talento, ofende-me; quem me disser que sou um homem de talento, aflige-me.
Renego o vosso talento; despejo-o com os jornais na latrina. Falo-vos claro; para mim o talento não é senão o grau sublime da mediocridade. O talento é aquela forma superior de inteligência que todos podem compreender, apreciar e amar. O talento é aquela mistura saborosa de facilidade, de espírito, de lugares-comuns afectados, de filiteísmo um tanto brilhante que agrada às senhoras, aos professores, aos advogados, aos mundanos, às famosas pessoas cultas, em suma, a todos os que estão meio por meio entre o céu e a terra, entre o paraíso e o inferno, a igual distância da animalidade profunda e do génio grande.

O Antagonismo Racial

O elemento puramente instintivo não constitui senão uma pequena parte do ódio racial e não é difícil de vencer. O medo do que é estrangeiro, que é a sua principal essência, desaparece com a familiaridade. Se nenhum outro elemento o formasse, toda a perturbação desapareceria logo que pessoas de raças diferentes se habituassem umas às outras. Mas há sempre pretextos para se odiarem os grupos estrangeiros. Os seus hábitos são diferentes dos nossos e portanto (em nossa opinião) piores. Se triunfam, é porque nos roubam as oportunidades; se não triunfam, é porque são miseráveis vagabundos. A actual população do mundo descende dos sobreviventes de longos séculos de guerras e por instinto está à espreita de ocasiões de hostilidade colectiva.

O desejo de ter um inimigo fixa-se no coração desse instinto racista e constrói à sua volta um edifício monstruoso de crueldade e de loucura. Tais conflitos representam hoje uma catástrofe universal e não já somente, como outrora, um desastre para os vencidos: daí as inquietações do nosso tempo. É por isso que é mais importante do que nunca conseguir um certo grau de domínio racional sobre os nossos sentimentos destruidores.

Em geral o ódio racial tem duas origens,

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Há Que Instruir o Povo, mas…

Há que instruir o povo. Afigura-se-nos, porém, que é presunção demasiada, em nosso parecer, pelo menos, pensar que o povo sem mais nem para quê vai ouvir-nos de boca aberta. Porque o povo não é um rebanho de carneiros! Mais ainda: estamos convencidos de que compreende, ou pelo menos pressente, que nós, os senhores, tão-pouco sabemos nada, ainda que nos apresentemos como mestres, e que precisamos que alguém nos ensine primeiro; eis por que efectivamente não respeita a nossa ciência, ou pelo menos não a ama.
Quem tiver tido algum comércio com o povo poderá verificar por si próprio esta impressão. Para que o povo nos ouça, efectivamente, de boca aberta, há que começar por merecê-lo, isto é, por ganhar a sua confiança, o seu respeito e essa nossa ideia de que basta usarmos da palavra para ele nos ouvir boquiaberto… não é a mais indicada para granjearmos a sua confiança e muito menos a sua estima. Mas o povo compreende-o. Não há nada que o homem entenda melhor que o tom com que nos dirigimos a ele, o sentimento que ele nos inspira. A ingénua crença na nossa incomensurável sabedoria relativamente ao povo antolha-se-lhe grotesca e em muitas ocasiões considera-a mesmo ofensiva.

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Desejar Aplausos

Desejar aplausos em arte é mais uma necessidade do que uma vaidade. É sentir que se é necessário, que nos querem. Não há nada mais esterilizante do que estar o dia inteiro no consultório à espera de doentes que nos passam à porta e vão à consulta do vizinho. Escrever para a posteridade não consola nem estimula ninguém. A legítima oração de todo o artista, quer queiram, quer não, tem de ser esta: dai-nos, Senhor, um pouco de glória em vida.

A Má Consciência

– Levanta-se sempre muito cedo, sr. Spinell – disse a mulher do sr. Kloterjahn. Por acaso, já o vi sair duas ou três vezes de casa às sete e meia da manhã.
– Muito cedo? Oh, é preciso distinguir! Se me levanto cedo é porque, no fundo, gosto de dormir até tarde.
– Explique-nos como é isso, sr. Spinell
A senhora conselheira Spatz também desejava ser elucidada.
– Ora… se alguém tem o costume de se levantar cedo, parece-me, em todo o caso, que não precisa de ser tão matinal. A consicência, minha senhora, que coisa péssima que é a consciência! Eu e os meus semelhantes andamos toda a vida às turras com ela, e temos um trabalhão para a enganarmos de vez em quando e procurar-lhe umas satisfaçõezinhas estultas. Somos criaturas inúteis, eu e os meus semelhantes; fora algumas breves horas satisfatórias, arrastamo-nos na certeza da nossa inutilidade, até ficarmos a sangrar e doentes. Odiamos o que é útil, sabendo-o vulgar e feio, e defendemos esta verdade como se defendem as verdades absolutamente necessárias. E, contudo, estamos tão corroídos pela nossa má consciência que não achamos em nós um ponto são.
Além disso, a maneira como vivemos interiormente,

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Títulos e Diplomas

Parece que a humanidade só se esforça enquanto tem a esperar diplomas idiotas, que pode exibir em público para obter proveitos, mas, quando já tem na mão tais diplomas idiotas em número suficiente, deixa-se levar. Ela vive em grande parte só para obter diplomas e títulos, não por qualquer outra razão, e, depois de ter obtido o número de diplomas e títulos que, na sua opinião, é suficiente, deixa-se cair na cama macia desses diplomas e títulos. Ela não parece ter qualquer outro objectivo para a vida. Não tem, segundo parece, qualquer interesse numa vida própria, independente, numa existência própria, independente, mas apenas nesses diplomas e títulos, sob os quais a humanidade há já séculos ameaça sufocar.
As pessoas não procuram independência e autonomia, não procuram a sua própria evolução natural, mas apenas esses diplomas e títulos e estariam, a todo o momento, prontas a morrer por esses diplomas e títulos, se lhos entregassem e dessem sem qualquer condição, esta é que é a verdade desmascaradora e deprimente. Tão pouco estimam elas a vida em si que só vêem os diplomas e títulos e nada mais. Elas penduram nas paredes das suas casas os diplomas e títulos, nas casas dos mestres talhantes e dos filósofos,

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A Prática Fomenta a Vontade

Se desejamos tornar-nos fortes, temos, primeiro, de comprender o que é a vontade. A vontade não é nenhuma entidade mística, que presida aos outros elementos do carácter, qual mestre de banda – sim, a soma, a substância de todos os nossos impulsos e disposições. Essa energia formadora do carácter não tem senhor a quem obedeça além de si própria; e é graças a ela que algum poderoso impulso pode vir a dominar e unificar o complexo. Isto forma a «força de vontade» – um supremo desejo que se ergue acima dos mais para arrastá-los num mesmo sentido ou para uma dada meta. Se não descobrimos essa meta não alcançaremos a unidade – e seremos simples pedra de que outro homem se utiliza nas suas construções.
Vem daí a inutilidade da leitura de livros que apontam as estradas reais do carácter. Tenho diante de mim um volume de um tal Leland (Londres, 1912), intitulado Tendes a Vontade Forte? ou Como Desenvolver Qualquer Faculdade do Espírito pelo Fácil Processo do Auto-Hipnotismo. Existem centenas destas obras-primas ao alcance dos simplórios de todas as cidades. Mas o caminho é mais penoso e longo.
Esse caminho é o caminho da vida. Vontade, isto é,

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Só Há Duas maneiras de se Ter Razão

Quando o público soube que os estudantes de Lisboa, nos intervalos de dizer obscenidades às senhoras que passam, estavam empenhados em moralizar toda a gente, teve uma exclamação de impaciência. Sim — exactamente a exclamação que acaba de escapar ao leitor…

Ser novo é não ser velho. Ser velho é ter opiniões. Ser novo é não querer saber de opiniões para nada. Ser novo é deixar os outros ir em paz para o Diabo com as opiniões que têm, boas ou más — boas ou más, que a gente nunca sabe com quais é que vai para o Diabo.

Os moços da vida das escolas intrometem-se com os escritores que não passam pela mesma razão porque se intrometem com as senhoras que passam. Se não sabem a razão antes de lha dizer, também a não saberiam depois. Se a pudessem saber, não se intrometeriam nem com as senhoras nem com os escritores.

Bolas para a gente ter que aturar isto! Ó meninos: estudem, divirtam-se e calem-se. Estudem ciências, se estudam ciências; estudem artes, se estudam artes; estudem letras, se estudam letras. Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres; divirtam-se de outra maneira, se preferem outra.

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Ambição e Poder

Examinemo-nos no momento em que a ambição nos trabalha, em que lhe sofremos a febre; dissequemos em seguida os nossos «acessos». Verificaremos que estes são precedidos de sintomas cuirosos, de um calor especial, que não deixa nem de nos arrastar nem de nos alarmar. Intoxicados de porvir por abuso de esperança, sentimo-nos de súbito responsáveis pelo presente e pelo futuro, no núcleo da duração, carregada esta dos nossos frémitos, com a qual, agentes de uma anarquia universal, sonhamos explodir. Atentos aos acontecimentos que se passam no nosso cérebro e às vicissitudes do nosso sangue, virados para o que nos altera, espiamos-lhe e acarinhamos-lhe os sinais. Fonte de perturbações, de transtornos ímpares, a loucura política, se afoga a inteligência, favorece em contrapartida os instintos e mergulha-os num caos salutar. A ideia do bem e sobretudo do mal que imaginamos ser capazes de cumprir regozijar-nos-á e exaltar-nos-á; e o feito das nossas enfermidades, o seu prodígio, será tal que elas nos instituirão senhores de todos e de tudo.
À nossa volta, observaremos uma alteração análoga naqueles que a mesma paixão corrói. Enquanto sofrerem o seu império, serão irreconhecíves, presas de uma embriaguez diferente de todas as outras. Tudo mudará neles, até o timbre da voz.

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Quer-te Muito a Tua Mulherzinha

Recebi ontem à noite o telegrama que mandaste da Foz. Desejo que tivesses encontrado tudo bem na nossa casinha. Espero com ansiedade a primeira cartinha tua que já cá devia estar. Estou a escrever-te sentada a uma janela com o papel em cima dum livro e o tinteiro no chão; é 1 hora e meia, a hora de ir até às galinhas a ver se já havia algum ovo.

Há quanto tempo isso foi! Escreve para cá só até ao dia 23 ou 24 porque dia 26 pela manhã partimos para Vila Viçosa. O carnaval é dia 8 e já vejo que para minha desgraça o vou passar no covil enjaulada como as feras perigosas. Pouca sorte a da pobre Bela! Não posso ainda hoje falar com o advogado nem amanhã que é domingo, de forma que só segunda-feira te poderei dizer qualquer coisa a esse respeito. Há só um comboio dia sim dia não para Lisboa de forma que não estranhes nem te inquietes por alguma pequena demora na correspondência.
Aí vai um belo soneto que as saudades tuas me trouxeram ontem; só quando estou triste sei fazer versos com jeito como esses. Provavelmente não gostas…

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Mantém uma Certa Distância dos teus Superiores

Ninguém deve poder imaginar que, de acordo com os teus superiores, participaste na elaboração de novas leis, sobretudo se forem impopulares. Mostra-te o menos possível na companhia do verdadeiro detentor do poder, mas conta-lhe à discrição rumores e anedotas, desde que não tragam consequências. Sobretudo, não te gabes diante de ninguém de teres conquistado a sua amizade.
Se a tua influência sobre os poderosos for notada, serás apontado como responsável pelas suas más acções. Procuca, pois, que o teu senhor escute atentamente os teus conselhos, tenha em conta as tuas observações, mas só provoque grandes reviravoltas políticas na tua ausência.

O Desejo como Consequência do Prazer e da Dor

O prazer e a dor suscitam o desejo. Desejo de alcançar o prazer e de evitar a dor. O desejo é o móbil principal da nossa vontade e, portanto, dos nossos atos. Do pólipo aos homens, todos os seres são movidos pelo desejo. Inspira a vontade, que não pode existir sem ele, e depende da sua intensidade. O desejo fraco suscita, naturalmente, uma vontade fraca.
Cumpre, no entanto, não confundir vontade e desejo, como fizeram muitos filósofos, tais como Condillac e Schopenhauer. Tudo quanto é querido é, evidentemente, desejado; mas desejamos muitas coisas que, sabemos, não podíamos querer. A vontade traduz deliberação, determinação e execução, estados de consciência que não se observam no desejo.
O desejo estabelece a escala dos nossos valores, variável, aliás, com o tempo e as raças. O ideal de cada povo é a fórmula do seu desejo.
Um desejo que invade todo o entendimento, transforma a nossa concepção das coisas, as nossas opiniões e as nossas crenças. Spinoza muito bem disse julgamos uma coisa boa, não por julgamento, mas porque a desejamos.

Não existindo em si mesmo o valor das coisas, ele é apenas determinado pelo desejo e proporcionalmente à intensidade desse desejo.A variável apreciação dos objetos de arte fornece desse fato uma prova diária.

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A Minha Felicidade Resume-se a Isto

Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais. Entre o número áureo e reduzido das horas felizes que a Vida deixa que eu passe, conto por do melhor ano aquelas em que a leitura de Conan Doyle ou de Arthur Morrison me pega na consciência ao colo.
Um volume de um destes autores, um cigarro de 45 ao pacote, a ideia de uma chávena de café — trindade cujo ser-uma é o conjugar a felicidade para mim — resume-se nisto a minha felicidade. Seria pouco para muitos, a verdade é que não pode aspirar a muito mais uma criatura com sentimentos intelectuais e estéticos no meio europeu actual.
Talvez seja para os senhores como que causa de pasmo, não o eu ter estes por meus autores predilectos —e de quarto de cama, mas o eu confessar que nesta conta pessoal assim os tenho.

Fazer Depender

Não faz o nome quem o doura, mas quem o adora. O sagaz mais quer necessitados de si que agradecidos. É furtar-se à esperança cortês o fiar-se no agradecimento do vulgo, pois o que aquela tem de memoriosa este tem de esquecidiço. Mais se extrai da dependência que da cortesia; quem está satisfeito dá as costas à fonte, e a laranja espremida cai do ouro ao lodo.
Acabada a dependência, acaba a correspondência, e com ela a estima. Seja lição, e sobretudo de experiência, mantê-la, não a satisfazer, conservando sempre em necessidade de si até o coroado senhor; mas não se há-de chegar ao excesso de calar para que errem, nem de deixar sem remédio o dano alheio para proveito próprio.

A Infelicidade do Desejo

Um desejo é sempre uma falta, carência ou necessidade. Um estado negativo que implica um impulso para a sua satisfação, um vazio com vontade de ser preenchido.

Toda a vida é, em si mesma, um constante fluxo de desejos. Gerir esta torrente é essencial a uma vida com sentido. Cada homem deve ser senhor de si mesmo e ordenar os seus desejos, interesses e valores, sob pena de levar uma vida vazia, imoderada e infeliz. Os desejos são inimigos sem valentia ou inteligência, dominam a partir da sua capacidade de nos cegar e atrair para o seu abismo.
A felicidade é, por essência, algo que se sente quando a realidade extravasa o que se espera. A superação das expectativas. Ser feliz é exceder os limites preestabelecidos, assim se conclui que quanto mais e maiores forem os desejos de alguém, menores serão as suas possibilidades de felicidade, pois ainda que a vida lhe traga muito… esse muito é sempre pouco para lhe preencher os vazios que criou em si próprio.

Na sociedade de consumo em que vivemos há cada vez mais necessidades. As naturais e todas as que são produzidas artificialmente. Hoje, criam-se carências para que se possa vender o que as preenche e anula.

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O Amor entre o Trigo

Cheguei ao acampamento dos Hernández antes do meio-dia, fresco e alegre. A minha cavalgada solitária pelos caminhos desertos, o repouso do sono, tudo isso refulgia na minha taciturna juventude.
A debulha do trigo, da aveia, da cevada, fazia-se ainda com éguas. Nada no mundo é mais alegre que ver rodopiar as éguas, trotando à volta do calcadouro do cereal, sob o grito espicaçante dos cavaleiros. Brilhava um sol esplêndido e o ar era um diamante silvestre que fazia brilhar as montanhas. A debulha é uma festa de ouro. A palha amarela acumula-se em montanhas douradas. Tudo é actividade e bulício, sacos que correm e se enchem, mulheres que cozinham, cavalos que tomam o freio nos dentes, cães que ladram, crianças que a cada momento é preciso livrar, como se fossem frutos da palha, das patas dos cavalos.

Oe Hernández eram uma tribo singular. Os homens, despenteados e por barbear, em mangas de camisa e com revólver à cinta, andavam quase sempre besuntados de óleo, de poeiras, de lama, ou molhados até aos ossos pela chuva. Pais, filhos, sobrinhos, primos, eram todos da mesma catadura. Estavam horas inteiras ocupados debaixo de um motor, em cima de um tecto,

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Deixa o que Seduz a Multidão

Se nós nada fizermos senão de acordo com os ditames da razão, também nada evitaremos senão de acordo com os ditames da razão. Se quiseres escutar a razão, eis o que ela te dirá: deixa de uma vez por todas tudo quanto seduz a multidão! Deixa a riqueza, deixa os perigos e os fardos de ser rico; deixa os prazeres, do corpo e do espírito, que só servem para amolecer as energias; deixa a ambição que não passa de uma coisa artificialmente empolada, inútil, inconsciente, incapaz de reconhecer limites, tão interessada em não ter superiores como em evitar até os iguais, sempre torturada pela inveja, e uma inveja ainda por cima dupla. Vê como de facto é infeliz quem, objecto de inveja ele próprio, tem inveja por outros.
Não estás a ver essas casas dos grandes senhores, as suas portas cheias de clientes que se atropelam na entrada? Para lá entrares, teria de sujeitar-te a inúmeras injúrias, mas mais ainda terias de suportar se entrasses. Passa frente às escadarias dos ricos senhores, aos seus átrios suspensos como terraços: se lá puseres os pés será como estares à beira de uma escarpa, e de uma escarpa prestes a ruir. Dirige ante os teus passos na via da sapiência,

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