A Subjectividade do Amor-PrĂłprio
Um mendigo dos arredores de Madrid esmolava nobremente. Disse-lhe um transeunte:
– O senhor nĂŁo tem vergonha de se dedicar a mister tĂŁo infame, quando podia trabalhar?
– Senhor, – respondeu o pedinte – estou-lhe a pedir dinheiro e nĂŁo conselhos. – E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas.
Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo nĂŁo suportava reprimendas.
Viajando pela Ăndia, topou um missionĂĄrio com um faquir carregado de cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e deixando-se chicotear em resgate dos pecados de seus patrĂcios hindus, que lhe davam algumas moedas do paĂs.
– Que renĂșncia de si prĂłprio! – dizia um dos espectadores.
– RenĂșncia de mim prĂłprio? – retorquiu o faquir. – Ficai sabendo que nĂŁo me deixo açoitar neste mundo senĂŁo para vos retribuir no outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro.
Tiveram pois plena razĂŁo os que disseram ser o amor de nĂłs mesmos a base de todos as nossas acçÔes – na Ăndia, na Espanha como em toda a terra habitĂĄvel. SupĂ©rfluo Ă© provar aos homens que tĂȘm rosto.
Textos sobre Senhores de Voltaire
2 resultadosA DependĂȘncia Ă© a Raiz de Todos os Males
O que deve um cĂŁo a um cĂŁo, um cavalo a um cavalo? Nada. Nenhum animal depende do seu semelhante. Tendo porĂ©m o homem recebido o raio da Divindade a que se chama razĂŁo, qual foi o resultado? Ser escravo em quase toda a terra. Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto Ă©, se em toda parte os homens encontrassem subsistĂȘncia fĂĄcil e certa e clima apropriado Ă sua natureza, impossĂvel teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o mundo de frutos salutares. NĂŁo fosse veĂculo de doenças e morte o ar que contribui para a existĂȘncia humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito alĂ©m do dos gansos e cabras monteses, nĂŁo teriam os Gengis CĂŁs e TamerlĂ”es vassalos senĂŁo os prĂłprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxiliĂĄ-los na velhice.
No estado natural de que gozam os quadrĂșpedes, aves e rĂ©pteis, tĂŁo feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguĂ©m pensaria: para quĂȘ servidores se nĂŁo tivĂ©sseis necessidade de nenhum serviço? Ainda que passasse pelo espĂrito de algum indivĂduo de bofes tirĂąnicos e braços impacientes por submeter o seu vizinho menos forte que ele,