Da Liberdade
A: Eis uma bateria de canhÔes que atira junto aos nossos ouvidos; tendes a liberdade de ouvi-la e de a não ouvir?
B: Ă claro que nĂŁo posso evitar ouvi-la.
A: DesejarĂeis que esse canhĂŁo decepasse a vossa cabeça e as da vossa mulher e da vossa filha que estivessem convosco?
B: Que espĂ©cie de proposição me fazeis? Eu jamais poderia, no meu sĂŁo juĂzo, desejar semelhante coisa. Isso Ă©-me impossĂvel.
A: Muito bem; ouvis necessariamente esse canhĂŁo e, tambĂ©m necessariamente, nĂŁo quereis morrer, vĂłs e a vossa famĂlia, de um tiro de canhĂŁo; nĂŁo tendes nem o poder de nĂŁo o ouvir nem o poder de querer permanecer aqui.
B: Isso Ă© evidente.
A: Em consequĂȘncia, destes uma trintena de passos a fim de vos colocardes ao abrigo do canhĂŁo: tivestes o poder de caminhar comigo estes poucos passos?
B: Nada mais verdadeiro.
A: E se fĂŽsseis paralĂtico? NĂŁo terĂeis podido evitar ficar exposto a essa bateria; nĂŁo terĂeis o poder de estar onde agora estais: terĂeis entĂŁo necessariamente ouvido e recebido um tiro de canhĂŁo e necessariamente estarĂeis morto?
B: Nada mais claro.
A: Em que consiste, pois,
Textos sobre Sentidos de Voltaire
3 resultadosAmor Comparado
Queres ter uma ideia do amor, vĂȘ os pardais do teu jardim; vĂȘ os teus pombos; contempla o touro que se leva Ă tua vitela; olha esse orgulhoso cavalo que dois valetes teus conduzem Ă Ă©gua em paz que o espera, e que desvia a cauda para recebĂȘ-lo; vĂȘ como os seus olhos cintilam; ouve os seus relinchos; contempla os seus saltos, camabalhotas, orelhas eriçadas, boca que se abre com pequenas convulsĂ”es, narinas que se inflam, sopro inflamado que delas sai, crinas que se revolvem e flutuam, movimento imperioso com o qual o cavalo se lança para o objecto que a natureza lhe destinou; mas nĂŁo tenhas inveja, e pensa nas vantagens da espĂ©cie humana: elas compensam com amor todas as que a natureza deu aos animais, força, beleza, ligeireza, rapidez. HĂĄ atĂ© mesmo animais que nĂŁo sabem o que Ă© o gozo. Os peixes escamados sĂŁo privados dessa doçura: a fĂȘmea lança no lodo milhĂ”es de ovos; o macho que os encontra passa sobre eles e fecunda-os com a sua semente, sem saber a que fĂȘmea eles pertencem. A maior parte dos animais que copulam sĂł tĂȘm prazer por um sentido; e, assim que esse apetite Ă© satisfeito, tudo se extingue.
A DependĂȘncia Ă© a Raiz de Todos os Males
O que deve um cĂŁo a um cĂŁo, um cavalo a um cavalo? Nada. Nenhum animal depende do seu semelhante. Tendo porĂ©m o homem recebido o raio da Divindade a que se chama razĂŁo, qual foi o resultado? Ser escravo em quase toda a terra. Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto Ă©, se em toda parte os homens encontrassem subsistĂȘncia fĂĄcil e certa e clima apropriado Ă sua natureza, impossĂvel teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o mundo de frutos salutares. NĂŁo fosse veĂculo de doenças e morte o ar que contribui para a existĂȘncia humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito alĂ©m do dos gansos e cabras monteses, nĂŁo teriam os Gengis CĂŁs e TamerlĂ”es vassalos senĂŁo os prĂłprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxiliĂĄ-los na velhice.
No estado natural de que gozam os quadrĂșpedes, aves e rĂ©pteis, tĂŁo feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguĂ©m pensaria: para quĂȘ servidores se nĂŁo tivĂ©sseis necessidade de nenhum serviço? Ainda que passasse pelo espĂrito de algum indivĂduo de bofes tirĂąnicos e braços impacientes por submeter o seu vizinho menos forte que ele,