Nunca Me Tinha Apaixonado Verdadeiramente
Escrevi atĂ© o princĂpio da manhĂŁ aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pĂŞlo dos gatos. O sol a chegar Ă escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silĂŞncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercĂcio, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhĂŁ apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.
Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois,
Textos sobre SolidĂŁo de JosĂ© LuĂs Peixoto
3 resultadosAcreditei que Podia Dar-te um Céu para Brincares
Filho. Gostava que houvesse uma aragem qualquer que me explicasse esse teu sorriso e outra que te explicasse, sem te magoar, o meu silêncio. Gostava de aprender o trejeito dos teus lábios, a maneira dos teus olhos, e to lembrar quando tivesses a minha idade. Fui um dia a tua inocência. E dela ficou-me a grande inocência de acreditar.
Acreditei que podia dar-te um cĂ©u para brincares e que a vida seria o que nĂłs quisĂ©ssemos. Assim. Bastaria querermos, esforçarmo-nos muito, trabalharmos, e terĂamos entĂŁo o que desejássemos. NĂŁo digo coisas majestosas, roupas bonitas ou charretes, mas comida, comida gostosa e bem temperada, e um cavalo de cartĂŁo novo, se por acaso esquecesses o teu no quintal numa noite de chuva. Acreditei que a felicidade dos teus olhos a sorrir podia voltar aos olhos da tua mĂŁe, aos meus e perdurar intocada nos teus. Acreditei em tantas coisas. Sabes, aproximo-me da vila e o que me espera Ă© morrer um pouco mais. Preferia que nĂŁo o soubesses, mas infelizmente nem isso posso esconder-te, porque um dia, quando te contarem a histĂłria da tua vida, dir-te-ĂŁo que numa noite de estrelas, o teu pai foi Ă vila e levou uma sova;
Na Tua Voz, IrmĂŁo
Estavam sentados e nĂŁo falavam. Cada um olhava para um lado que nĂŁo via. Atrás dos rostos tristes, cismavam. Pensando, MoisĂ©s dizia palavras ao irmĂŁo, esperançado de que ele as ouvisse; no pensamento, dizia será um instante e trará a solidĂŁo. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro. Já reparaste?, nunca precisámos de nos chamar. NĂŁo sei como Ă© o meu nome na tua voz. Na tua voz, irmĂŁo, irmĂŁo. NĂŁo sei como Ă© o teu nome na minha voz. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro, e o desespero será a antecâmara de uma dor triste a que nos habituaremos, como se habitua um homem sem coração ao espaço negro no peito. Viveste sempre na minha vida, e eu estive sempre contigo quando sorriste. Hoje, a solidĂŁo. Desapareceremos um do outro, deixaremos de ser nĂłs para sermos sĂł tu e sĂł eu. Mas nĂŁo esqueceremos. E lembrarmo-nos será o maior sofrimento, recordarmos o que fomos onde estivermos e nĂŁo podermos ser mais nada nesse dia. Lembrarmo-nos de quando acordávamos e olhávamos um para o outro, pois tĂnhamos acordado ao mesmo tempo e tĂnhamos ao mesmo tempo pensado em ver-nos. Lembrarmo-nos de falar na nossa maneira de falar,