Textos sobre Teoria

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Textos de teoria escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Pensamento em Boa Forma

Cumpre-nos não só averiguar porque se gasta a vida, dia após dia, e o pouco que resta à proporção vai diminuindo. Pensemos também no seguinte: supondo que a um homem toque viver longa vida, uma questão permanece escura: a de saber se a sua inteligência será capaz, tempo adiante, sem defecção, de compreender os problemas e a teoria que apontam ao conhecimento das coisas divinas e humanas. Se ele pega a cair em estado de infantilidade, a respiração, a alimentação, a imaginação, os gestos impulsivos e as outras funções do mesmo género não lhe faltarão necessariamente; mas dispor de si, obtemperar exactamente a todas as exigências morais, analisar as aparências, ver se não será já tempo de entrouxar e ir para melhor estão à altura de responder a necessidades desta ordem – para tudo isso se necessita de um raciocínio em boa forma; e o raciocínio, há que tempos perdeu a chama e a agudeza. Cumpre-nos pois andar ligeiros, não só porque a morte se avizinha a cada momento mas ainda porque antes de morrer perdemos a capacidade de conceber as coisas e de lhes prestar atenção.

A Visão do Universo

Existem certas pessoas – e eu sou uma delas – que pensam que a coisa mais prática e importante acerca de um homem ainda é a sua visão do universo. Pensamos que, para uma senhoria considerando se deve aceitar um pensionista, é importante saber a sua renda, porém mais importante ainda é conhecer a sua filosofia. Pensamos que, para um general prestes a combater um inimigo, é importante saber os números do inimigo, porém mais importante é conhecer a filosofia do inimigo. Pensamos que a questão não é saber se a teoria do cosmos afecta ou não as coisas, mas se, no longo prazo, qualquer outra coisa as afecta.

O Que Sou e o Que Faço Neste Mundo

Involuntariamente, inconscientemente, nas leituras, nas conversas e até junto das pessoas que o rodeavam, procurava uma relação qualquer com o problema que o preocupava. Um ponto o preocupava acima de tudo: por que é que os homens da sua idade e do seu meio, os quais exactamente como ele, pela sua maior parte, haviam substituído a fé pela ciência, não sofriam por isso mesmo moralmente? Não seriam sinceros? Ou compreendiam melhor do que ele as respostas que a ciência proporciona a essas questões perturbadoras? E punha-se então a estudar, quer os homens, quer os livros, que poderiam proporcionar-lhe as soluções tão desejadas.
(…) Atormentado constantemente por estes pensamentos, lia e meditava, mas o objectivo perseguido cada vez se afastava mais dele. Convencido de que os materialistas nenhuma resposta lhe dariam, relera, nos últimos tempos da sua estada em Moscovo, e depois do seu regresso à aldeia, Platão e Espinosa, Kant e Schelling, Hegel e Schopenhauer. Estes filósofos satisfaziam-no enquanto se contentavam em refutar as doutrinas materialistas e ele próprio encontrava então argumentos novos contra elas; mas, assim que abordava – quer através das leituras das suas obras, quer através dos raciocínios que estas lhe inspiravam – a solução do famoso problema,

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A Tirania Intelectual do Número

«Uma das mais estranhas ideias do vulgo, previu Henry Maine, é que o sufrágio universal pode promover e promoverá progresso, criando novas ideias, novas invenções, novas artes. Mas as probabiblidades são para que só produza uma forma nociva de conservantismo». Temos de admitir, com os ingleses ricos em preconceitos, que a democracia é hostil ao génio e à arte. Porque ela só dá valor ao que cabe dentro da compreensão dos espíritos médios; quando vê erguer-se o palácio de um cinema, julga tratar-se do Pártenon; «se dependesse da assembleia ateniense nunca o mundo teria a Acrópole» (Plutarco, Vida de Péricles).
A tirania intelectual do número pode tornar-se tão torturante como a dos monarcas; em alguns estados americanos o conhecimento acima de um certo limite já é considerado coisa perigosa. A desconfiança que a democracia tem da individualidade decorre da teoria da igualdade; desde que todos são iguais, basta a contagem dos narizes para a descoberta da verdade ou a santificação de um costume. E a democracia não é apenas uma filha da era da máquina que governa por meio de «máquinas»; ainda encerra em si a potencialidade da mais terrível das máquinas – a compulsão dos ignorantes contra a diferença,

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O Provincianismo Português (II)

Se fosse preciso usar de uma só palavra para com ela definir o estado presente da mentalidade portuguesa, a palavra seria “provincianismo”. Como todas as definições simples esta, que é muito simples, precisa, depois de feita, de uma explicação complexa. Darei essa explicação em dois tempos: direi, primeiro, a que se aplica, isto é, o que deveras se entende por mentalidade de qualquer país, e portanto de Portugal; direi, depois, em que modo se aplica a essa mentalidade.
Por mentalidade de qualquer país entende-se, sem dúvida, a mentalidade das três camadas, organicamente distintas, que constituem a sua vida mental — a camada baixa, a que é uso chamar povo; a camada média, a que não é uso chamar nada, excepto, neste caso por engano, burguesia; e a camada alta, que vulgarmente se designa por escol, ou, traduzindo para estrangeiro, para melhor compreensão, por elite.
O que caracteriza a primeira camada mental é, aqui e em toda a parte, a incapacidade de reflectir. O povo, saiba ou não saiba ler, é incapaz de criticar o que lê ou lhe dizem. As suas ideias não são actos críticos, mas actos de fé ou de descrença, o que não implica, aliás,

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Sabedoria Prática Inexistente

A maioria dos luxos e muitos dos chamados confortos da vida não só são dispensáveis como constituem até obstáculos à elevação da humanidade. No que diz respeito a luxos e confortos, os mais sábios sempre viveram de modo mais simples e despojado que os pobres. Os antigos filósofos chineses, indianos, persas e gregos eram uma classe que se notabilizava pela extrama pobreza de bens exteriores, em contraste com a sua riqueza interior. Embora não saibamos muito a seu respeito, é de admirar que saibamos tanto quanto sabemos. O mesmo acontece com reformadores e benfeitores mais recentes, da nacionalidade deles. Ninguém pode ser um observador imparcial e sábio da raça humana, a não ser da posição vantajosa a que chamaríamos pobreza voluntária.
O fruto de uma vida de luxo é também luxo, seja em agricultura, comércio, literatura ou arte. Hoje em dia há professores de filosofia, mas não há filósofos. Contudo é admirável ensinar filosofia porque um dia foi admirável vivê-la. Ser um filósofo não é apenas ter pensamentos subtis, nem sequer fundar uma escola, mas amar a sabedoria a ponto de viver, segundo os seus ditames, uma vida de simplicidade, independência, magnanimidade e confiança. É solucionar alguns problemas da vida não só na teoria mas também na prática.

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Um Cérebro Sempre Jovem

A sociedade está a ser varrida por um movimento chamado nova velhice. A norma social para as pessoas de idade era passiva e sombria; confinadas a cadeiras de baloiço, esperava-se que entrassem em declínio físico e mental. Agora o inverso é verdade. As pessoas mais velhas têm expetativas mais elevadas de que permanecerão ativas e com vitalidade. Consequentemente, a definição de velhice mudou. Num inquérito perguntou-se a uma amostra de baby boomers: “Quando tem início a velhice?” A resposta média foi aos 85. À medida que aumentam as expetativas, o cérebro deve claramente manter-se a par e adaptar-se à nova velhice. A antiga teoria do cérebro fixo e estagnado sustentava ser inevitável um cérebro que envelhecesse. Supostamente as células cerebrais morriam continuamente ao longo do tempo à medida que uma pessoa envelhecia, e a sua perda era irreversível.

Agora que compreendemos quão flexível e dinâmico é o cérebro, a inevitabilidade da perda celular já não é válida. No processo de envelhecimento — que progride à razão de 1% ao ano depois dos trinta anos de idade — não há duas pessoas que envelheçam de maneira igual. Até os gémeos idênticos, nascidos com os mesmos genes, terão muito diferentes padrões de atividade genética aos setenta anos,

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O Paradoxo da Sabedoria

São muito raros no género humano os homens verdadeiramente sábios; o concurso de condições e circunstâncias especiais necessário para que os haja, ocorre com tanta dificuldade que não deve admirar a sua raridade: demais a sua aparição pouco ou nada aproveita aos outros homens que os desprezam, perseguem ou motejam, incapazes de compreendê-los, e os obrigam finalmente ao silêncio, retiro e reclusão.
(…) Não esperem os homens por, maior que seja o progresso da sua inteligência, chegar a conhecer as verdades capitais e primitivas sobre a essência e natureza das coisas: mudarão de erros, fábulas, hipóteses e teorias, mas nunca poderão alcançar conhecimentos que hajam de mudar a natureza humana, e fazer os homens diversos do que farão e do que são.
O mundo varia aos olhos e nas opiniões dos homens, conforme as idades e condições da vida.

O Sucesso para um Grande Amor

Estou contente porque a minha querida não tem ainda o afecto exclusivo e único que há-de sentir um dia por um homem, apesar de todas as suas teorias que há-de ver voar, voar para tão longe ainda!… E no entanto, elas são tão verdadeiras! Ainda assim, minha querida Júlia, uma das coisas melhores da nossa vida de tão prosaico século, é o amor, o grande e discutido amor, o nosso encanto e o nosso mistério; as nossas pétalas de rosa e a nossa coroa de espinhos. O amor único, doce e sentimental da nossa alma de portugueses, o amor de que fala Júlio Dantas, «uma ternura casta, uma ternura sã» de que «o peito que o sente é um sacrário estrela­do», como diz Junqueiro; o amor que é a razão única da vida que se vive e da alma que se tem; a paixão delicada que dá beijos ao luar e alma a tudo, desde o olhar ao sorriso, — é ainda uma coisa nobre, bela e digna! Digna de si, do seu sentir, do seu grande coração, ao mesmo tempo violento e calmo. Esse amor que «em sendo triste, canta, e em sendo alegre, chora», esse amor há-de senti-lo um dia,

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Vamos Buscar as Nossas Ideias ao Estrangeiro

Que ideias gerais temos? As que vamos buscar ao estrangeiro. Nem as vamos buscar aos movimentos filosóficos profundos do estrangeiro; vamos buscá-las à superfície, ao jornalismo de ideias. E assim as ideias que adoptamos, sem alteração nem crítica, são ou velhas ou superficiais. Falamos a sério nas ideias políticas de León Blum ou de Edouard Herriot, nenhum dos quais teve alguma vez ideias — políticas ou outras — em sua vida. Falamos a sério em Bourget, Maurras […].

Plagiamos o fascismo e o hitlerismo, plagiamos claramente, com a desvergonha da inconsciência, como a criança imita sem hesitar. Não reparamos que fascismo e hitlerismo, em sua essência, nada têm de novo, porventura nada de aproveitável, como ideias; o que não sabemos imitar, porque seria mais difícil, é a personalidade de Mussolini.

As ideias de Maurras, que qualquer raciocinador hábil desfaz sem dificuldade, se tiver a paciência de vencer o tédio quase insuportável de o ler, passam por leis da natureza, por tão indiscutíveis como, não direi já a teoria atómica, que tem elementos discutíveis, mas o coeficiente de dilatação do ferro, ou a lei de Boyle ou de Mariotte.

Temos poetas de mérito. Que fazem eles?

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A Individualidade Não Se Deixa Representar

Conselho ao intelectual: Não deixes que te representem. A fungibilidade das obras e das pessoas e a crença daí derivada de que todos têm de poder fazer tudo revelam-se no seio do estado vigente como grilhões. O ideal igualitário da representatividade é uma fraude, se não for sustentado pelo princípio da revogabilidade e da responsabilidade do rank and file. O mais poderoso é justamente o que menos faz, o que mais se pode encarregar daquele a que se dedica e sua vantagem arrecada. Parece colectivismo e fica-se apenas pela demasiado boa opinião de si mesmo, pela exclusão do trabalho, graças à disposição do trabalho alheio.
Na produção material está solidamente implantada a substituibilidade. A quantificação dos processos laborais diminui tendencialmente a diferença entre o encargo do director geral e o do empregado de uma estação de serviço. É uma ideologia miserável pensar que, nas actuais condições, para a admininstração de um trust se requer mais inteligência, experiência e preparação do que para ler um manómetro. Mas enquanto na produção material há um apego tenaz a esta ideologia, o espírito da que lhe é contrária cai na submissão. Tal é a cada vez mais ruinosa doutrina da universitas litterarum, da igualdade de todos na república das ciências,

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Teoria e Prática

Se, por um lado, qualquer teoria positiva deve ser necessariamente fundamentada em observações, é igualmente sensível, por outro, que, para se entregar à observação, o nosso espírito necessita de uma teoria qualquer. Se, ao contemplar os fenómenos, não os ligarmos imediatamente a alguns princípios, não apenas nos será impossível combinar essas observações isoladas e, consequentemente, delas tirar algum fruto, mas seríamos inteiramente incapazes de retê-las; e, na maioria das vezes, os factos permaneceriam despercebidos aos nossos olhos.

Quando Chega uma Carta Tua

Quando chega uma carta tua todas as divagações acabam, e acordo para a vida. Todos os problemas estranhos deixam de ter importância, os misteriosos quadros de doenças se desvanecem, e acabam-se as teorias vazias «de acordo com o estado presente da ciência», como elas são chamadas. Então o mundo fica tão acolhedor, tão alegre, tão fácil de compreender. A minha doce querida não é uma ilusão, ela não tem que ser comprovada por testes químicos; de facto ela pode ser observada a olho nú. Ainda bem que ela não tem nada a ver com doenças – e espero que continue – excepto por ter sido suficientemente imprudente para tomar um médico para amante. Oh Marty, é muito mais gratificante ser um ser humano em vez de um armazém de certas experiências monótonas. Mas ninguém se pode permitir a ser um ser humano por uma hora a não ser que tenha sido uma máquina ou um armazém por onze horas. E aqui chegámos, onde começámos.

A Falácia do Sucesso

Abominável coisa é o bom êxito, seja dito de passagem. A sua falsa parecença com o merecimento ilude os homens. Para o vulgo, o bom sucesso equivale à supremacia. A vítima dos logros do triunfo, desse menecma da habilidade, é a história. Só Tácito e Juvenal se lhe opõem. Existe na época e sente uma filosofia quase oficial, que envergou a libré do bom êxito e lhe faz o serviço da antecâmara. Fazei por serdes bem sucedido, é a teoria. Prosperidade supõe capacidade. Ganhai na lotaria, sereis um homem hábil. Quem triunfa é venerado. Nascei bem-fadado, não queirais mais nada. Tende fortuna, que o resto por si virá; sede feliz, julgar-vos-ão grande. Se pusermos de parte as cinco ou seis excepções imensas que fazem o esplendor de um século, a admiração contemporânea é apenas miopia. Duradora é ouro. Pouco importa que não sejais ninguém, contanto que consigais alguma coisa.
O vulgo é um narciso velho, que se idolatra a si próprio e aplaude o vulgar. A faculdade sublime de ser Moisés, Esquilo, Dante, Miguel Ângelo ou Napoleão, decreta-a a multidão indistintamente e por unanimidade a quem atinge o alvo que se propôs, seja no que for. Que um tabelião se transforme em deputado;

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A Vida não Cabe numa Teoria

A vida… e a gente põe-se a pensar em quantas maravilhosas teorias os filósofos arquitectaram na severidade das bibliotecas, em quantos belos poemas os poetas rimaram na pobreza das mansardas, ou em quantos fechados dogmas os teólogos não entenderam na solidão das celas. Nisto, ou então na conta do sapateiro, na degradação moral do século, ou na triste pequenez de tudo, a começar por nós.
Mas a vida é uma coisa imensa, que não cabe numa teoria, num poema, num dogma, nem mesmo no desespero inteiro dum homem.
A vida é o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre estes montes cobertos de neve e de sol, uma manta de panasco onde uma ovelha acabou de parir um cordeiro, e duas crianças — um rapaz e uma rapariga — silenciosas, pasmadas, a olhar o milagre ainda a fumegar.

Os Intelectuais e as Massas

Os intelectuais fazem a teoria, as massas a economia. Finalmente, os intelectuais utilizam as massas e através deles a teoria utiliza a economia. Por isso é-lhes necessário manter o estado de sítio e a servidão económica – para que as massas continuem a ser massas manobráveis. É bem certo que a economia constitui a matéria da história. As ideias contentam-se com conduzi-la.

Porque é que os Homens não Compreendem as Mulheres

Tu estás convencida há vários anos de que eu não te compreendo. Esta é sempre a teoria das mulheres, que não são compreendidas, que não são queridas, que não são adoradas, as queixas montanhas grandes, queixas enormes, sempre a justificar uma infelicidade que lhes vem lá do fundo da criação do mundo, do útero, da terra, as mulheres reflectem o útero feminino da terra, um útero cheio de aflições, em conclusão, queixam-se de tudo então entre os quarenta e os cinquenta, esse útero funciona nas alturas, é um útero cósmico que já não é parte de uma mulher, pertence à mulher do mundo. Há muita verdade no que dizes, o homem desinteressa-se facilmente, depois do acto do amor, depois logo sacode as penas, arrebita, passa à frente, domina outro mundo, a mulher fica fechada, acanhada nesse encontro muito íntimo, nesse seu mais fundo dos fundos, na identidade uterina com a ideia da criação, da reprodução da génese, salta, salta, forma-se na mulher a visão do caos a que só ela pelo amor pode dar uma nova regra, pelo domínio da paixão, pela companhia, para isso tem de ser compreendida, ela julga que é compreendida, tem de justificar a sua infelicidade pela compreensão do amor,

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A Base da Civilização

A lei do universo baseia-se sobre o concurso destes dois grandes agentes: a luta pela vida e a selecção natural. A luta pela vida é o estado permanente de todos os seres, para os quais a criação é uma eterna batalha. A sorte do conflito decide-a a selecção natural. Como? Fixando na espécie, pela adaptação ao meio, os seres mais fortes, e expulsando os seres inferiores. Por isso o professor Haeckel affirma: «A teoria de Darwin estabelece que nas sociedades humanas, como nas sociedades animais, nem os direitos, nem os deveres, nem os bens, nem os gostos dos membros associados podem ser iguais.» Ora o que é que estabelece o Direito? O Direito estabelece precisamente o contrario disso: a igualdade dos deveres recíprocos para a mais equitativa distribuição dos bens.
O Direito portanto não só não é uma emanação da lei natural, mas é uma reacção contra essa lei. A natureza é o triunfo brutal decretado ao forte. A sociedade é a protecção consciente assegurada ao fraco. A criação funda a luta pela vida. A sociedade organiza o auxílio pela existência.
Uma civilização é tanto mais adiantada quanto mais ela submete ao seu domínio as fatalidades naturais. E é assim que o homem,

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A Luta de Classes Acabou

A luta de classes esfumou-se, dissolveu-se, a democracia tem funcionado como um diluente social: toda a gente vive, compra e acorre ao hipermercado, ao balcão do bar e aos concertos pagos pelo município na praça central, e todos falam ao mesmo tempo, vozes que se misturam como nas tumultuosas reuniões no cine Tivoli evocadas pelo meu pai, já não se distingue o que está em cima do que está em baixo, está tudo enredado, confuso, e, porém, reina uma misteriosa ordem, eis a democracia. Mas, de súbito, desde há um par de anos, parece desenhar-se uma ordem mais explícita, menos insidiosa. A nova ordem é bem visível, com os níveis superior e inferior bem definidos: alguns transportam com orgulho sacos repletos de compras e cumprimentam sorridentes os vizinhos à porta do centro comercial, outros remexem nos contentores onde os empregados do hipermercado lançaram as embalagens de carne fora de prazo, a fruta e as verduras pisadas, os pastéis industriais caducados. Lutam entre si por esses alimentos.

(…) Trivial, a luta de classes? Então não era isso que determinava, que impregnava e condicionava tudo? O grande motor da história universal? Não era nisso que acreditavam o meu pai e os seus camaradas,

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Os que Morrem por Amor

Os que morrem por amor continuam a pertencer à lenda. Os seus funerais arrastam uma multidão piedosa, tal como decerto aconteceu na cidade de Verona, há seiscentos anos. Ainda que nesse tempo os costumes fossem bastante fáceis, a prática erótica da juventude era muito mais modesta. Reflectindo melhor, é de crer que a própria licença produzisse um tipo de pessoas orgulhosas da sua intimidade afectiva; o que, se não é virtude, algo se parece. Este orgulho da própria intimidade conduz a uma atitude hostil em relação a tudo o que pode burocratizar os sentimentos. Há um sociólogo inclinado a crer que existe muito de romantismo burocrático no amor moderno. É possível. E quando aparecem os contestatários dessa espécie de burocracia, como são os Romeus e Julietas do Candal, a cidade fica-lhes agradecida. No campo dos afectos trata-se da luta obstinada que resulta do choque entre a vida privada e o regime governativo; entre um corpo animado de impulsos e uma autoridade explicada por leis. Através de inquéritos feitos nos meios juvenis para inquirir das transformações que se efectuam no âmbito das relações afectivas, deparam-se declarações bastante confusas. Elas pairam entre uma sinceridade elementar que descura a experiência e teorias perfeitamente viciadas nos lugares-comuns do século.

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