CrĂłnica de Natal
Todos os anos, por esta altura, quando me pedem que escreva alguma coisa sobre o Natal, reajo de mau modo. «Outra vez, uma história de Natal! Que chatice!» — digo. As pessoas ficam muito chocadas quando eu falo assim. Acham que abuso dos direitos que me são conferidos. Os meus direitos são falar bem, assim como para outros não falar mal. Uma vez, em Paris, um chauffeur de táxi, desses que se fazem castiços e dizem palavrões para corresponder à fama que têm, aborreceu-me tanto que lhe respondi com palavrões. Ditos em francês, a mim não me impressionavam, mas ele levou muito a mal e ficou amuado. Como se eu pisasse um terreno que não era o meu e cometesse um abuso. Ele era malcriado mas eu – eu era injusta. Cada situação tem a sua justiça própria, é isto é duma complexidade que o código civil não alcança.
Mas dizia eu: «Outra vez o Natal, e toda essa boa vontade de encomenda!» Ponho-me a percorrer as imagens que sĂŁo de praxe, anjos trombeteiros, pastores com capotes de burel e meninos pobres do tempo da Revolução Industrial inglesa. Pobres e explorados, mas, entretanto, nĂŁo excluĂdos do trato social atravĂ©s dos seus conflitos prĂłprios,
Textos sobre Terrenos de Agustina Bessa-LuĂs
3 resultadosOs que Morrem por Amor
Os que morrem por amor continuam a pertencer Ă lenda. Os seus funerais arrastam uma multidĂŁo piedosa, tal como decerto aconteceu na cidade de Verona, há seiscentos anos. Ainda que nesse tempo os costumes fossem bastante fáceis, a prática erĂłtica da juventude era muito mais modesta. Reflectindo melhor, Ă© de crer que a prĂłpria licença produzisse um tipo de pessoas orgulhosas da sua intimidade afectiva; o que, se nĂŁo Ă© virtude, algo se parece. Este orgulho da prĂłpria intimidade conduz a uma atitude hostil em relação a tudo o que pode burocratizar os sentimentos. Há um sociĂłlogo inclinado a crer que existe muito de romantismo burocrático no amor moderno. É possĂvel. E quando aparecem os contestatários dessa espĂ©cie de burocracia, como sĂŁo os Romeus e Julietas do Candal, a cidade fica-lhes agradecida. No campo dos afectos trata-se da luta obstinada que resulta do choque entre a vida privada e o regime governativo; entre um corpo animado de impulsos e uma autoridade explicada por leis. AtravĂ©s de inquĂ©ritos feitos nos meios juvenis para inquirir das transformações que se efectuam no âmbito das relações afectivas, deparam-se declarações bastante confusas. Elas pairam entre uma sinceridade elementar que descura a experiĂŞncia e teorias perfeitamente viciadas nos lugares-comuns do sĂ©culo.
A Construção da Personalidade Criadora
A harmonia do comportamento social requer, todos o sabemos, tanto o isolamento como o convĂvio. Excessiva comunicação, debates exagerados de assuntos que requerem meditação e peso moral, avesso muitas vezes Ă cordialidade natural das afinidades electivas, nĂŁo enriquecem o patrimĂłnio de uma sociedade. Antes embotam e alteram o terreno imparcial da sabedoria.
A solidĂŁo favorece a intensidade do pensamento; por outro lado, torna de certo modo celerado o homem que lida com a força material, com a tĂ©cnica, com os outros homens. O impulso Ă© a força que actualiza estas duas atitudes. Os ricos de impulso que se prontificam a uma reacção agressiva ou escandalosa, esses sĂŁo associais especialmente difĂceis. Todo o revolucionário Ă© associal, se o impulso for nele um desvio da vida instintiva, e nĂŁo uma atitude de homem capaz de obedecer e mandar a si prĂłprio.
«A felicidade máxima do filho da terra há-de ser a personalidade» – disse Goethe. Personalidade criadora, obtida à custa do ajustamento das nossas próprias leis interiores, que não serão mais, no futuro, forças repelidas ou encobertas, mas sim valiosas contribuições para o tempo do homem. Quando tudo for analisado e conhecido, só o justo há-de prevalecer.