Na Leitura e na Escrita Encontramo-nos Todos naquilo que Temos de Mais Humano
A escrita, ou a arte, para ser mais abrangente, cumpre funções que mais nenhuma área consegue cumprir. (…) Sinto que há poucas experiĂŞncias tĂŁo interessantes como quando se lĂŞ um livro e se percebe “já senti isto, mas nunca o tinha visto escrito”, procurar isso, ou procurar escrever textos que façam sentir isso, Ă© uma das minhas buscas permanentes. Trata-se de ordenar, de esquematizar, nĂŁo sĂł sentimentos como ideias que temos de uma forma vaga mas que entendemos melhor quando os vemos em palavras. Trata-se tambĂ©m de construir empatia: atravĂ©s da leitura temos oportunidade de estar na pele de outras pessoas e de sentir coisas que nĂŁo fazem parte da nossa vida, mas que no momento em que lemos conseguimos perceber como Ă©. E isso faz-nos ser mais humanos. Na leitura e na escrita encontramo-nos todos naquilo que temos de mais humano.
Textos sobre Texto de JosĂ© LuĂs Peixoto
5 resultadosAmo-te
Talvez nĂŁo seja prĂłprio vir aqui, para as páginas deste livro, dizer que te amo. NĂŁo creio que os leitores deste livro procurem informações como esta. No mundo, há mais uma pessoa que ama. Qual a relevância dessa notĂcia? Ă€ sombra do guarda-sol ou de um pinheiro de piqueniques, os leitores nĂŁo deverĂŁo impressionar-se demasiado com isso. Depois de lerem estas palavras, os seus pensamentos instantâneos poderĂŁo diluir-se com um olhar em volta. Para eles, este texto será como iniciais escritas por adolescentes na areia, a onda que chega para cobri-las e apagá-las. E possĂvel que, perante esta longa afirmação, alguns desses leitores se indignem e que escrevam cartas de protesto, que reclamem junto da editora. Dou-lhes, desde já, toda a razĂŁo.
Eu sei. Talvez não seja próprio vir aqui dizer aquilo que, de modo mais ecológico, te posso afirmar ao vivo, por email, por comentário do facebook ou mensagem de telemóvel, mas é tão bom acreditar, transporta tanta paz. Tu sabes. Extasio-me perante este agora e deixo que a sua imensidão me transcenda, não a tento contrariar ou reduzir a qualquer coisa explicável, que tenha cabimento nas palavras, nestas pobres palavras. Em vez disso, desfruto-a, sorrio-lhe. Não estou aqui com a expectativa de ser entendido.
A Certeza do Nosso Amor
A certeza do nosso amor era calma. Ao escrever, algo de nĂłs se tocava. Ao escrever, sentia-a passar por mim, sentia-a atravessar-me. Depois, fechava os olhos e via-a sorrir. Ainda dentro de mim, mas um pouco do seu rosto de anjo e da lonjura do seu olhar e dos seus gestos brandos a existir na página, no texto. Ă€s vezes, levantava-me, segurava as folhas a tremerem-me na mĂŁo e lia devagar. ApĂłs cada frase, parava e ouvia-a lida na memĂłria. Ela era o texto. Cada palavra a dizia, cada palavra era o nome dos seus gestos e de tudo o que em si era belo. Ela era o sentido das palavras. Ela nĂŁo era nem material, nem imaterial. Ela era o sentido das palavras. Nem sequer terra, nem sequer cĂ©u, estrelas, noite. Existia para lá do que podemos tocar ou entender. Ela era aquilo que existia, porque era sentida por mim. Existia dentro de mim e existia no texto para quem o lesse. Existia porque existia, porque existia para ser sentida. As noites passavam e conhecĂamo-nos. Por ela estar dentro de mim e dentro do texto escrito pela minha mĂŁo, cheguei a pensar que era parte de mim. Enganei-me. Ela era maior do que eu.
Escuta, Amor
Quando damos as mãos, somos um barco feito de oceano, a agitar-se sobre as ondas, mas ancorado ao oceano pelo próprio oceano. Pode estar toda a espécie de tempo, o céu pode estar limpo, verão e vozes de crianças, o céu pode segurar nuvens e chumbo, nevoeiro ou madrugada, pode ser de noite, mas, sempre que damos as mãos, transformamo-nos na mesma matéria do mundo. Se preferires uma imagem da terra, somos árvores velhas, os ramos a crescerem muito lentamente, a madeira viva, a seiva. Para as árvores, a terra faz todo o sentido. De certeza que as árvores acreditam que são feitas de terra.
Por isto e por mais do que isto, tu estás aĂ e eu, aqui, tambĂ©m estou aĂ. Existimos no mesmo sĂtio sem esforço. Aquilo que somos mistura-se. Os nossos corpos sĂł podem ser vistos pelos nossos olhos. Os outros olham para os nossos corpos com a mesma falta de verdade com que os espelhos nos reflectem. Tu Ă©s aquilo que sei sobre a ternura. Tu Ă©s tudo aquilo que sei. Mesmo quando nĂŁo estavas lá, mesmo quando eu nĂŁo estava lá, aprendĂamos o suficiente para o instante em que nos encontrámos.
Aquilo que existe dentro de mim e dentro de ti,
A Voz que Ouço quando Leio
Quando leio, há uma voz que lĂŞ dentro de mim. Paro o olhar sobre o texto impresso, mas nĂŁo acredito que seja o meu olhar que lĂŞ. O meu olhar fica embaciado. É essa voz que lĂŞ. Quando Ă© sĂ©ria, ouço-a falar-me de assuntos sĂ©rios. Ă€s vezes, sussurra-me. Ă€s vezes, grita-me. Essa voz nĂŁo Ă© a minha voz. NĂŁo Ă© a voz que, em filmagens de festas de anos e de natais, vejo sair da minha boca, do movimento dos meus lábios, a voz que estranho por, num rosto parecido com o meu, nĂŁo me parecer minha. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas nĂŁo Ă© minha. NĂŁo Ă© a voz dos meus pensamentos. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas Ă© exterior a mim. É diferente de mim. Ainda assim, nĂŁo acredito que alguĂ©m possa ter uma voz que lĂŞ igual Ă minha, por isso Ă© minha mas nĂŁo Ă© minha. Mas, claro, nĂŁo posso ter a certeza absoluta. NĂŁo sĂł porque uma voz Ă© indescritĂvel, mas tambĂ©m porque nunca ninguĂ©m me tentou descrever a voz que ouve quando lĂŞ e porque eu nunca falei com ninguĂ©m da voz que ouço quando leio.