Luta de Classes
Não contem comigo para defender o elitismo cultural. Pelo contrário, contem comigo para rebentar cada detalhe do seu preconceito.
A cultura Ă© usada como sĂmbolo de status por alguns, alfinete de lapela, botĂŁo de punho. A raridade Ă© condição indispensável desse exibicionismo. SĂł pertencendo a poucos se pode ostentar como diferenciadora. Essa colecção de sĂmbolos Ă© descrita com pronĂşncia mais ou menos afectada e tem o objectivo de definir socialmente quem a enumera.
Para esses indivĂduos raros, a cultura Ă© caracterizada por aqueles que a consomem. Assim, convĂ©m nĂŁo haver misturas. Conheço melhor o mundo da leitura, por isso, tomo-o como exemplo: se, no inĂcio da madrugada, uma dessas mulheres que acorda cedo e faz limpeza em escritĂłrios for vista a ler um determinado livro nos transportes pĂşblicos, os snobs que assistam a essa imagem sĂŁo capazes de enjeitá-lo na hora. ComeçarĂŁo a definir essa obra como “leitura de empregadas de limpeza” (com muita probabilidade utilizarĂŁo um sinĂłnimo mais depreciativo para descrevĂŞ-las).
Este exemplo aplica-se em qualquer outra área cultural que possa chegar a muita gente: mĂşsica, cinema, televisĂŁo, etc. Aquilo que mais surpreende Ă© que estes “argumentos”, esta forma de falar e de pensar seja utilizada em meios supostamente culturais por indivĂduos supostamente cultos,
Textos sobre Valor de JosĂ© LuĂs Peixoto
3 resultadosNunca Me Tinha Apaixonado Verdadeiramente
Escrevi atĂ© o princĂpio da manhĂŁ aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pĂŞlo dos gatos. O sol a chegar Ă escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silĂŞncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercĂcio, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhĂŁ apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.
Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois,
Cada Dia Ă© Sempre Diferente dos Outros
Cada dia é sempre diferente dos outros, mesmo quando se faz aquilo que já se fez. Porque nós somos sempre diferentes todos os dias, estamos sempre a crescer e a saber cada vez mais, mesmo quando percebemos que aquilo em que acreditávamos não era certo e nos parece que voltámos atrás. Nunca voltamos atrás. Não se pode voltar atrás, não se pode deixar de crescer sempre, não se pode não aprender. Somos obrigados a isso todos os dias. Mesmo que, às vezes, esqueçamos muito daquilo que aprendemos antes. Mas, ainda assim, quando percebemos que esquecemos, lembramo-nos e, por isso, nunca é exactamente igual.
— Porquê, pai?
— Porque a memĂłria nĂŁo deixa que seja igual, mesmo que seja uma memĂłria muito vaga, mesmo que seja sĂł assim uma espĂ©cie de sensação muito vaga. É que a memĂłria nĂŁo Ă© sempre aquilo que gostarĂamos que fosse. Grande parte dos nossos problemas estĂŁo na memĂłria volĂşvel que possuĂmos. Aquilo que Ă© hoje uma verdade absoluta, amanhĂŁ pode nĂŁo ter nenhum valor. Porque nos esquecemos, filho. Esquecemos muito daquilo que aprendemos. E cansamo-nos. E quando estamos cansados, deixamos de aprender. Queremos nĂŁo aprender por vontade. Essa Ă© a nossa maneira de resistir,