O Primeiro Beijo
Durante todas as noites desse verĂŁo, as estrelas foram lĂquidas no cĂ©u. Quando eu as olhava, eram pontos lĂquidos de brilho no cĂ©u. Na primeira vez, encontrĂĄmo-nos durante o dia: eu sorri-lhe, ela sorriu-me. Dissemos duas ou trĂȘs palavras e contivemo-nos dentro dos nossos corpos. Os olhos dela, por um instante, foram um abismo onde fiquei envolto por leveza luminosa, onde caĂa como se flutuasse: cair atravĂ©s do cĂ©u dentro de um sonho.
Naquela noite, fiquei a esperĂĄ-la, encostado ao muro, alguns metros depois da entrada da pensĂŁo. As pessoas que passavam eram alegres. Eu pensava em qualquer coisa que me fazia sentir maior por dentro, como a noite. As folhas de hera que cobriam o cimo do muro, e que se suspendiam sobre o passeio, eram uma Ășnica forma nocturna, feita apenas de sombras. Primeiro, senti as folhas de hera a serem remexidas; depois, vi os braços dela a agarrarem-se ao muro; depois, o rosto dela parado de encontro ao cĂ©u claro da noite. E faltou uma batida ao coração.
O mundo parou. Sombras pousavam-lhe, transparentes, na pele do rosto. O ar fresco, arrefecido, moldava-lhe a pele do rosto. E o mundo continuou. Ajudei-a a descer.
Textos sobre VerĂŁo de JosĂ© LuĂs Peixoto
3 resultadosTive um Cavalo de CartĂŁo
Mulher. A tua pele branca foi um verão que quis viver e me foi negado. Um caminho que não me enganou. Enganou-me a luz e os olhos foscos das manhãs revividas. Enganou-me um sonho de poder ser o filho que fui, a correr pelos campos todo o dia, a medir as searas pelo tamanho dos braços abertos; enganou-me um sonho de poder ser o filho que fui no teu homem e no teu rosto, no teu filho, nosso. Não hå manhãs para reviver, sei-o hoje. Não se podem construir dias novos sobre manhãs que se recordam. Inventei-te talvez, partindo de uma estrela como todas estas. Quis ter uma estrela e dar-lhe as manhãs de julho. As grandes manhãs de julho diante de casa e a minha mãe a acabar o almoço bom e o meu pai a chegar e a ralhar, sem ser a sério, por o almoço não estar pronto e eu sentado na terra, talvez a fazer um barroco, talvez a brincar com o cavalo de cartão. Tive um cavalo de cartão. Nunca te contei, pouco te contei, mas tive um cavalo de cartão. Brincava com ele e era bonito. Gostava muito dele. Tanto. Tanto. Tanto. Quando o meu pai mo trouxe,
Escuta, Amor
Quando damos as mãos, somos um barco feito de oceano, a agitar-se sobre as ondas, mas ancorado ao oceano pelo próprio oceano. Pode estar toda a espécie de tempo, o céu pode estar limpo, verão e vozes de crianças, o céu pode segurar nuvens e chumbo, nevoeiro ou madrugada, pode ser de noite, mas, sempre que damos as mãos, transformamo-nos na mesma matéria do mundo. Se preferires uma imagem da terra, somos årvores velhas, os ramos a crescerem muito lentamente, a madeira viva, a seiva. Para as årvores, a terra faz todo o sentido. De certeza que as årvores acreditam que são feitas de terra.
Por isto e por mais do que isto, tu estĂĄs aĂ e eu, aqui, tambĂ©m estou aĂ. Existimos no mesmo sĂtio sem esforço. Aquilo que somos mistura-se. Os nossos corpos sĂł podem ser vistos pelos nossos olhos. Os outros olham para os nossos corpos com a mesma falta de verdade com que os espelhos nos reflectem. Tu Ă©s aquilo que sei sobre a ternura. Tu Ă©s tudo aquilo que sei. Mesmo quando nĂŁo estavas lĂĄ, mesmo quando eu nĂŁo estava lĂĄ, aprendĂamos o suficiente para o instante em que nos encontrĂĄmos.
Aquilo que existe dentro de mim e dentro de ti,