Tem de se Ser Verdadeiro na Escrita
Tem de se ser verdadeiro na escrita, porque os leitores sentem. A mentira Ă© impossĂvel na boa literatura. E o que procuro, mais do que a beleza ou qualquer outra coisa, Ă© a verdade, livro apĂłs livro, tentando desvendar um pouco mais de mim e esperando que essa possa ser uma forma de desvendar alguma coisa dos outros e que eles tambĂ©m se vejam reflectidos nessa procura que faço.
Textos sobre Verdadeiros de JosĂ© LuĂs Peixoto
5 resultadosO Significado do Amor
Eu pensava que conhecia o significado do amor. O amor é o sangue do sol dentro do sol. A inocência repetida mil vezes na vontade sincera de desejar que o céu compreenda. Levantam-se tempestades frágeis e delicadas na respiração vegetal do amor. Como uma planta a crescer da terra. O amor é a luz do sol a beber a voz doce dessa planta. Algo dentro de qualquer coisa profunda.
O amor Ă© o sentido de todas as palavras impossĂveis. Atravessar o interior de uma montanha. Correr pelas horas originais do mundo. O amor Ă© a paz fresca e a combustĂŁo de um incĂŞndio dentro, dentro, dentro, dentro, dentro dos dias. Em cada instante de manhĂŁ, o cĂ©u a deslizar como um rio. A tarde, o sol como uma certeza. O amor Ă© feito de claridade e da seiva das rochas. O amor Ă© feito de mar, de ondas na distância do oceano e de areia eterna. O amor Ă© feito de tantas coisas opostas e verdadeiras. Nascem lugares para o amor e, nesses jardins etĂ©reos, a salvação Ă© uma brisa que cai sobre o rosto suavemente.
Eu acreditava mesmo que o amor Ă© o sangue do sol dentro do sol.
Tive um Cavalo de CartĂŁo
Mulher. A tua pele branca foi um verão que quis viver e me foi negado. Um caminho que não me enganou. Enganou-me a luz e os olhos foscos das manhãs revividas. Enganou-me um sonho de poder ser o filho que fui, a correr pelos campos todo o dia, a medir as searas pelo tamanho dos braços abertos; enganou-me um sonho de poder ser o filho que fui no teu homem e no teu rosto, no teu filho, nosso. Não há manhãs para reviver, sei-o hoje. Não se podem construir dias novos sobre manhãs que se recordam. Inventei-te talvez, partindo de uma estrela como todas estas. Quis ter uma estrela e dar-lhe as manhãs de julho. As grandes manhãs de julho diante de casa e a minha mãe a acabar o almoço bom e o meu pai a chegar e a ralhar, sem ser a sério, por o almoço não estar pronto e eu sentado na terra, talvez a fazer um barroco, talvez a brincar com o cavalo de cartão. Tive um cavalo de cartão. Nunca te contei, pouco te contei, mas tive um cavalo de cartão. Brincava com ele e era bonito. Gostava muito dele. Tanto. Tanto. Tanto. Quando o meu pai mo trouxe,
Na Tua Voz, IrmĂŁo
Estavam sentados e nĂŁo falavam. Cada um olhava para um lado que nĂŁo via. Atrás dos rostos tristes, cismavam. Pensando, MoisĂ©s dizia palavras ao irmĂŁo, esperançado de que ele as ouvisse; no pensamento, dizia será um instante e trará a solidĂŁo. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro. Já reparaste?, nunca precisámos de nos chamar. NĂŁo sei como Ă© o meu nome na tua voz. Na tua voz, irmĂŁo, irmĂŁo. NĂŁo sei como Ă© o teu nome na minha voz. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro, e o desespero será a antecâmara de uma dor triste a que nos habituaremos, como se habitua um homem sem coração ao espaço negro no peito. Viveste sempre na minha vida, e eu estive sempre contigo quando sorriste. Hoje, a solidĂŁo. Desapareceremos um do outro, deixaremos de ser nĂłs para sermos sĂł tu e sĂł eu. Mas nĂŁo esqueceremos. E lembrarmo-nos será o maior sofrimento, recordarmos o que fomos onde estivermos e nĂŁo podermos ser mais nada nesse dia. Lembrarmo-nos de quando acordávamos e olhávamos um para o outro, pois tĂnhamos acordado ao mesmo tempo e tĂnhamos ao mesmo tempo pensado em ver-nos. Lembrarmo-nos de falar na nossa maneira de falar,
A Voz que Ouço quando Leio
Quando leio, há uma voz que lĂŞ dentro de mim. Paro o olhar sobre o texto impresso, mas nĂŁo acredito que seja o meu olhar que lĂŞ. O meu olhar fica embaciado. É essa voz que lĂŞ. Quando Ă© sĂ©ria, ouço-a falar-me de assuntos sĂ©rios. Ă€s vezes, sussurra-me. Ă€s vezes, grita-me. Essa voz nĂŁo Ă© a minha voz. NĂŁo Ă© a voz que, em filmagens de festas de anos e de natais, vejo sair da minha boca, do movimento dos meus lábios, a voz que estranho por, num rosto parecido com o meu, nĂŁo me parecer minha. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas nĂŁo Ă© minha. NĂŁo Ă© a voz dos meus pensamentos. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas Ă© exterior a mim. É diferente de mim. Ainda assim, nĂŁo acredito que alguĂ©m possa ter uma voz que lĂŞ igual Ă minha, por isso Ă© minha mas nĂŁo Ă© minha. Mas, claro, nĂŁo posso ter a certeza absoluta. NĂŁo sĂł porque uma voz Ă© indescritĂvel, mas tambĂ©m porque nunca ninguĂ©m me tentou descrever a voz que ouve quando lĂŞ e porque eu nunca falei com ninguĂ©m da voz que ouço quando leio.