Textos sobre Vida

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Textos de vida escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Preciso de Ti

O amor é bem capaz de ser a melhor maneira de nos encontrarmos connosco.
Preciso de ti para saber de mim.
Sei-o sempre que por minutos parece que vou perder-te, numa discussão das que vamos tendo. Discutir é abrir a válvula do amor, deixá-lo respirar, sangrá-lo para poder regressar à estrada. Nenhum amor aguenta sem sangrar.
Preciso de ti para pensar em mim.
Sei-o porque quando parece que vais eu vou também, deixo de saber quem sou, como sou. Para onde vou.
Preciso de ti para precisar de mim.
E os que não me entendem que vão para o raio que os parta. Os que dizem que isto não é nada recomendável, que isto não devia ser assim, que eu devia ser capaz de ser o que sou sem precisar de ti. Infelizes.
Preciso de ti para cuidar de mim.
O amor é bem capaz de ser precisar do outro para cuidarmos de nós.
E eu cuido-me. Quero estar viva para te poder amar. Conheces melhor motivo do que esse? É claro que amo os meus pais, a minha família toda, os meus gatos, aquilo que a vida me tem dado.

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Mentimos para Proteger o nosso Prazer

A mentira é essencial à humanidade. Nela desempenha porventura um papel tão importante como a procura do prazer, e de resto é comandada por essa mesma procura. Mentimos para proteger o nosso prazer, ou a nossa honra se a divulgação do prazer for contrária à honra. Mentimos ao longo de toda a nossa vida, até, e sobretudo, e talvez apenas, àqueles que nos amam. Só estes, com efeito, nos fazem temer pelo nosso prazer e desejar a sua estima.

O Nascimento do Prazer

O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a possibilidade de ser compreendida – e se parece com o início de uma perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom – como se a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte. Deve-se deixar inundar pela alegria aos poucos – pois é a vida nascendo. E quem não tiver força, que antes cubra cada nervo com uma película protetora, com uma película de morte para poder tolerar a vida. Essa película pode consistir em qualquer ato formal protetor, em qualquer silêncio ou em várias palavras sem sentido. Pois o prazer não é de se brincar com ele. Ele é nós.

A Sociabilidade é Proporcional à Vulgaridade

O homem inteligente aspirará, antes de tudo, à ausência de dor, à serenidade, ao sossego e ao ócio, logo, procurará uma vida tranquila, modesta e o menos conflituosa possível; por conseguinte, após travar algum conhecimento com aqueles que chamamos de homens, escolherá o reatraimento e, no caso de um grande espírito, até a solidão. Pois, quanto mais alguém tem em si mesmo, menos precisa do mundo exterior e menos também os outros lhe podem ser úteis. Por isso, a eminência do espírito conduz à insociabilidade. Sim, se a qualidade da sociedade pudesse ser substituída pela quantidade, valeria a pena viver até no grande mundo, mas infelizmente cem néscios empilhados não dão um único homem razoável. Já aquele que está no outro extremo, assim que a necessidade lhe permitir recobrar o ânimo, procurará passatempo e companhia a qualquer preço, e a tudo se acomodará facilmente, de nada fugindo a não ser de si.
Pois é na solidão, onde cada um está entregue a si mesmo, que se mostra o que ele tem em si mesmo. Nela, sob a púrpura, o simplório suspira, carregando o fardo irremovível da sua mísera individualidade, enquanto o mais talentoso povoa e vivifica com os seus pensamentos o ambiente mais ermo.

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Sobre a Reforma

Lançar-me-ia num discurso demasiado longo se referisse aqui em particular todas as razões naturais que levam os velhos a retirarem-se dos negócios do mundo: as mudanças de humor, de condições físicas e o enfraquecimento orgânico levam as pessoas e a maior parte dos animais, a afastarem-se pouco a pouco dos seus semelhantes. O orgulho, que é inseparável do amor-ptóprio, substitui-se-lhes à razão: já não pode ser lisonjeado pela maior parle das coisas que lisonjeiam os outros, porque a experiência lhe fez conhecer o valor do que todos os homens desejam na juventude e a impossibilidade de o continuar a disfrutar; as diversas vias que parecem abertas aos jovens para alcançar grandeza, prazeres, reputação e tudo o mais que eleva os homens, estão-lhes vedadas, quer pela fortuna ou pela sua conduta, quer pela inveja ou pela injustiça dos outros; o caminho de reingresso nessas vias é demasiado longo e demasiado árduo para quem já se perdeu nelas; as dificuldades parecem-lhes impossíveis de ultrapassar e a idade já lhes não permite tais pretensões. Tornam-se insensíveis à amizade, não só porque talvez nunca tenham encontrado nenhuma verdadeira, mas também porque viram morrer grande número de amigos que ainda não tinham tido tempo nem ocasião de desiludir a sua amizade e,

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Tende Piedade de Mim

Tende piedade de mim, pequei até ao mais íntimo do meu ser. Mas os meus projectos não eram para desprezar inteiramente; até tinha alguns pequenos talentos, dissipei-os, criatura louca que fui, estou agora perto do fim precisamente quando tudo exteriormente pode acabar por ser em meu favor. Não me deitem fora entre os perdidos. Sei que é o meu ridículo amor-próprio que está a falar, ridículo, quer seja visto à distância, quer de bem perto; mas, como estou vivo, também tenho o amor da vida pela vida, e se a vida não é ridícula, as suas manifestações inevitáveis não o podem ser também.

O Adoçamento da Pílula Vocabular

É curioso verificar através da língua — espelho fiel de cada sociedade e de cada época — como em certos aspectos essenciais da vida não houve práticamente progresso nenhum, consistindo tudo quanto se fez num puro e vazio eufemismo de designação. Escravo, servo, criado, empregado, assalariado … ; demoníaco, possesso, maluco, doido, doente, nevrosado…

A Amizade como Auxiliar da Virtude

A maioria dos homens, na sua injustiça, para não dizer na sua imprudência, quer possuir amigos tais como eles próprios não seriam. Exigem o que não têm. O que é justo é que, primeiro, sejamos homens de bem e em seguida procuremos o que nos pareça sê-lo. Só entre homens virtuosos se pode estabelecer esta conveniência em amizade, sobre a qual insisto há muito tempo. Unidos pela benevolência, guiar-se-ão nas paixões a que se escravizam os outros homens. Amarão a justiça e a equidade. Estarão sempre prontos a tudo empreender uns pelos outros, e não se exigirão reciprocamente nada que não seja honesto e legítimo. Enfim, terão uns para os outros, não somente deferências e ternuras, mas, também, respeito. Eliminar o respeito da amizade é podar-lhe o seu mais belo ornamento.
É pois erro funesto crer que a amizade abre via livre às paixões e a todos os géneros de desordens. A natureza deu-nos a amizade, não como cumplice do vício, mas como auxiliar da virtude.
A fim de que a virtude, que, sozinha, não poderia chegar ao ápice, pudesse atingi-lo com o auxílio e o apoio de tal companhia. Aqueles para quem esta aliança existe, existiu ou existirá,

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O Provincianismo Português (II)

Se fosse preciso usar de uma só palavra para com ela definir o estado presente da mentalidade portuguesa, a palavra seria “provincianismo”. Como todas as definições simples esta, que é muito simples, precisa, depois de feita, de uma explicação complexa. Darei essa explicação em dois tempos: direi, primeiro, a que se aplica, isto é, o que deveras se entende por mentalidade de qualquer país, e portanto de Portugal; direi, depois, em que modo se aplica a essa mentalidade.
Por mentalidade de qualquer país entende-se, sem dúvida, a mentalidade das três camadas, organicamente distintas, que constituem a sua vida mental — a camada baixa, a que é uso chamar povo; a camada média, a que não é uso chamar nada, excepto, neste caso por engano, burguesia; e a camada alta, que vulgarmente se designa por escol, ou, traduzindo para estrangeiro, para melhor compreensão, por elite.
O que caracteriza a primeira camada mental é, aqui e em toda a parte, a incapacidade de reflectir. O povo, saiba ou não saiba ler, é incapaz de criticar o que lê ou lhe dizem. As suas ideias não são actos críticos, mas actos de fé ou de descrença, o que não implica, aliás,

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A Inteligência e o Carácter das Massas

O nosso tempo é rico em mentes inventivas, cujas invenções podem facilitar consideravelmente as nossas vidas. Estamos a atravessar os mares com potência e a utilizar a potência também para libertar a humanidade de todo o trabalho muscular cansativo. Aprendemos a voar e somos capazes de enviar mensagens e notícias sem qualquer dificuldade para todo o mundo através de ondas eléctricas.
Contudo, a produção e a distribuição de bens estão completamente desorganizadas, de tal forma que toda a gente vive com medo de ser completamente eliminada do ciclo económico, sofrendo deste modo do querer tudo. Para além disso, as pessoas que vivem em países diferentes matam-se umas às outras com intervalos de tempo irregulares, de tal modo que, também por esta razão, todo aquele que pensa no futuro vive no medo e no terror. Isto deve-se ao facto de a inteligência e o carácter das massas serem incomparavelmente menores do que a inteligência e o carácter dos poucos que produzem algo de verdadeiramente válido para a comunidade.
Tenho confiança em que a posteridade lerá estas afirmações com um sentimento de orgulho e superioridade justificada.

Façam a Barba, Meus Senhores!

A barba, por ser quase uma máscara, deveria ser proibida pela polícia. Além disso, enquanto distintivo do sexo no meio do rosto, ela é obscena: por isso é apreciada pelas mulheres.
Dizem que a barba é natural ao homem: não há dúvida, e por isso ela é perfeitamente adequada ao homem no estado natural; do mesmo modo, porém, no estado civilizado é natural ao homem fazer a barba, uma vez que assim ele demonstra que a brutal violência animalesca – cujo emblema, percebido imediatamente por todos, é aquela excrescência de pêlos, característica do sexo masculino – teve de ceder à lei, à ordem e à civilização.
A barba aumenta a parte animalesca do rosto e ressalta-a. Por essa razão, confere-lhe um aspecto brutal tão evidente. Basta observar um homem barbudo de perfil enquanto ele come! Este pretende que a barba seja um ornamento. No entanto, há duzentos anos era comum ver esse ornamento apenas em judeus, cossacos, capuchinhos, prisioneiros e ladrões. A ferocidade e a atrocidade que a barba confere à fisionomia dependem do facto de que uma massa respectivamente sem vida ocupa metade do rosto, e justamente aquela que expressa a moral. Além disso, todo o tipo de pêlo é animalesco.

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As Nossas Possibilidades de Felicidade

É simplesmente o princípio do prazer que traça o programa do objectivo da vida. Este princípio domina a operação do aparelho mental desde o princípio; não pode haver dúvida quanto à sua eficiência, e no entanto o seu programa está em conflito com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo como com o microcosmo. Não pode simplesmente ser executado porque toda a constituição das coisas está contra ele; poderíamos dizer que a intenção de que o homem fosse feliz não estava incluída no esquema da Criação. Aquilo a que se chama felicidade no seu sentido mais restrito vem da satisfação — frequentemente instantânea — de necessidades reprimidas que atingiram uma grande intensidade, e que pela sua natureza só podem ser uma experiência transitória. Quando uma condição desejada pelo princípio do prazer é protelada, tem como resultado uma sensação de consolo moderado; somos constituídos de tal forma que conseguirmos ter prazer intenso em contrastes, e muito menos nos próprios estados intensos. As nossas possibilidades de felicidade são assim limitadas desde o princípio pela nossa formação. É muito mais fácil ser infeliz.
O sofrimento tem três procedências: o nosso corpo, que está destinado à decadência e dissolução e nem sequer pode passar sem a ansiedade e a dor como sinais de perigo;

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Pensar Custa

Pensar é a todo momento e a todo custo. Pensar dói, cansa e só traz aborrecimentos. Melhor é não pensar. Mas pensar não é facultativo. Se o cérebro, a mínima parte dele que seja, deixa de estar alerta por um momento, penetram lá, como parasitas difíceis de erradicar, «ideias» vindas da imprensa, do rádio, da televisão, da propaganda geral, dos produtos em série, do consumo degenerado, dos doutores em lei, arte, literatura, ciência, política, sociologia. Essa massa de desinformação, não só inútil como nociva, nos é, aliás, imposta de maneira criminosa nos primeiros anos de nossa vida. E se, algum dia, chegamos a pensar no verdadeiro sentido do termo, todo o restante esforço da existência é para nos livrarmos de uma lamentável herança cultural. Pois, infelizmente, o cérebro humano é um dos poucos órgãos do corpo que não têm uma válvula excretora. E as fezes culturais ficam lá, nos envenenando pelo resto da vida, transformando o mais complexo e mais nobre órgão do corpo numa imensa fossa, imunda e fedorenta. Um lamentável erro da Criação.

A Vida Oblíqua

Só agora pressenti o oblíquo da vida. Antes só via através de cortes retos e paralelos. Não percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida é outra. Que viver não é só desenrolar sentimentos grossos — é algo mais sortilégico e mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existência feneça no que tem de oblíquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e não existe nisso contradição.

A vida oblíqua é muito íntima. Não digo mais sobre essa intimidade para não ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblíquo na sua independência desenvolta.
E conheço também um modo de vida que é suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contínua, de uma habilidade de esquivança que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excêntrica. Tem um lado da vida que é como no inverno tomar café num terraço dentro da friagem e aconchegada na lã.
Conheço um modo de vida que é sombra leve desfraldada ao vento e balançando leve no chão: vida que é sombra flutuante,

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O Elixir do Prazer

Que é, pois, o que se opera na alma, quando se deleita mais com as coisas encontradas ou reavidas que estima, do que se as possuísse sempre? Há, na verdade, muitos outros exemplos que o afirmam. Abundam os testemunhos que nos gritam: -«É assim mesmo!». Triunfa o general vitorioso. Mas não teria alcançado a vitória se não tivesse pelejado e quanto mais grave foi o perigo no combate, tanto maior é o gozo no triunfo. A tempestade arremessa os marinheiros, ameaçando-os com o naufrágio: todos empalidecem com a morte iminente. Mas tranquilizam-se o céu e o mar, e todos exultam muito, porque muito temeram. Está doente um amigo e o seu pulso acusa perigo. Todos os que o desejam ver curado sentem-se simultaneamente doentes na alma. Melhora. Ainda não recuperou as forças antigas e já reina tal júbilo qual não existia antes, quando se achava são e forte.
Até os próprios prazeres da vida humana não se apossam do coração do homem só por desgraças inesperadas e fortuitas, mas por moléstias previstas e voluntariamente procuradas. Não há prazer nenhum no comer e beber, se o incómodo da fome e da sede o não precede. Por isso, os ébrios costumam tomar certos alimentos salgados,

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Razão afectada pelo Desejo

O homem que deseja agir de certa forma se persuadirá que, assim procedendo, alcançará algum propósito que considera bom, mesmo que não vise motivo algum para pensar dessa forma, se não tivesse tal desejo. E julgará os factos e probabilidades de maneira muito diferente daquela adoptada por um homem com desejos opostos. Como todos sabem, os jogadores estão cheios de crenças irracionais relativas a sistemas que devem, no fim, fazê-los ganhar. Os que se interessam pela política persuadem-se de que os líderes do seu partido jamais praticariam as patifarias cometidas pelos adversários. Os homens que gostam de administrar acham que é bom para o povo ser tratado como um rebanho de ovelhas, os que gostam do fumo dizem que acalma os nervos, e os que apreciam o álcool afirmam que aguça o tino. A parcialidade assim criada falsifica o julgamento dos homens em relação aos factos, de modo muito difícil de evitar.
Até mesmo um erudito artigo científico sobre os efeitos do álcool no sistema nervoso em geral trai, por sintomas internos, o facto de o autor ser ou não abstémio; em ambos os casos tende a ver os factos de maneira que justifique a sua atitude. Em política e religião tais considerações tornam-se muito importantes.

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Dos Estudos

Os estudos servem para deleite, ornamento e proficiência. Para deleite, são principalmente usados na vida íntima e retirada; para ornamento, nos dicursos; e para proficiência, no exame e resolução de negócios. Os homens experientes estão capacitados a decidir, ou opinar sobre casos isolados; mas os conselhos genéricos, o planeamento e condução de negócios, cabem antes aos proficientes. Gastar tempo demasiado em estudos é indolência; abusar deles como ornamento é afectação; julgar apenas de acordo com os seus preceitos é coisa de escolástico.
Os estudos aperfeiçoam a natureza e são aperfeiçoados pela experiência, porquanto os dotes naturais são como as plantas: devem ser cultivados mediante o estudo. Outrossim, quando não estão vinculados à experiência, os estudos fornecem directivas a esmo. Os homens hábeis desprezam os estudos, os simples admiram-nos, e os sábios utilizam-nos. Os estudos não ensinam o seu próprio uso; esta é uma sabedoria independente e superior a eles, que vem da observação.

Técnicas de Narrador

Os que me conheceram aos quatro anos dizem que era pálido e ensimesmado e que só falava para contar disparates, mas os meus relatos eram em grande parte episódios simples da vida diária, que eu tornava mais atraentes com pormenores fantásticos para que os adultos me prestassem atenção. A minha melhor fonte de inspiração eram as conversas que os mais velhos mantinham diante de mim, porque pensavam que não as entendia, ou as que cifravam de propósito para que não as entendesse. E, de facto, acontecia o contrário: absorvia-as como uma esponja, desmontava-as em peças, alterava-as para escamotear a origem, e quando as contava aos mesmos que as tinham contado ficavam perplexos pelas coincidências entre o que eu dizia e o que eles pensavam.

Às vezes não sabia o que fazer com a minha consciência e procurava dissimular com um rápido pestanejar. Tanto era assim que algum racionalista da família decidiu que eu fosse observado por um médico da vista, que atribuiu o meu pestanejar a uma infecção das amígdalas e me receitou um xarope de rábano iodado que me fez muito bem para aliviar os adultos. A avó, por seu lado, chegou à conclusão providencial de que o neto era adivinho.

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Amor não Tem Número

Se você não tomar cuidado vira número até para si mesmo. Porque a partir do instante em que você nasce classificam-no com um número. Sua identidade no Félix Pacheco é um número. O registro civil é um número. Seu título de eleitor é um número. Profissionalmente falando você também é. Para ser motorista, tem carteira com número, e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é identificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de apartamento — tudo é número.
Se é dos que abrem crediário, para eles você é um número. Se tem propriedade, também. Se é sócio de um clube tem um número. Se é imortal da Academia Brasileira de Letras tem o número da cadeira.
É por isso que vou tomar aulas particulares de Matemática. Preciso saber das coisas. Ou aulas de Física. Não estou brincando: vou mesmo tomar aulas de Matemática, preciso saber alguma coisa sobre cálculo integral.
Se você é comerciante, seu alvará de localização o classifica também.
Se é contribuinte de qualquer obra de beneficência também é solicitado por um número. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou de negócio recebe um número. Para tomar um avião,

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No Mundo não Tem Boa Sorte Senão quem Tem por Boa a que Tem

Uma cousa sabei de mim: que queria antes o bem do mal, que o mal do bem; porque muito mais se sente o porvir, que o passado; e a morte, até matar, mata. Não sei se sereis marca de voar tão alto; porque, para tomar a palha a esta matéria, são necessárias asas de nebri. Mas vós sois homem de prol, e desculpa-me a conta em que vos tenho. E a que de mim vos sei dar, é que:

Esperança me despede,
tristeza não me falece,
e tudo o mais m’aborrece.
Já que mais não mereceu
minha estrela,
só a tristeza conheço,
pois que para mim nasceu
e eu para ela.

No mundo não tem boa sorte senão quem tem por boa a que tem. E daqui me vem contentar-me, de triste. Mas olhai de que maneira:

Vivo assi ao revés,
tomando por certa vida
certa morte,
com que folgo, em que me pês,
pois minha sorte é servida
de tal sorte.

Uma cousa sabei: que o mal, ainda que às vezes o vejais louvar, não há quem o louve com a boca que o não taxe com o coração:

Ajudai-me a sofrer
vida tão sem sofrimento,

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