A Importância dos Princípios
Entre os homens, alguns há que possuem naturalmente um excelente carácter e que assimilam sem necessidade de longa instrução os princípios tradicionais, que abraçam a via da moralidade desde o primeiro momento em que dela ouvem falar; do meio destes é que surgem aqueles génios que concitam em si toda a gama de virtudes, que produzem eles mesmos virtudes. Mas aos outros, àqueles que têm o espírito embotado, obtuso ou dominado por tradições erróneas, a esses há que raspar a ferrugem que têm na alma. Mais ainda: se transmitirmos os preceitos básicos da filosofia aos primeiros, rapidamente eles atingirão o mais alto nível, pois estão naturalmente inclinados ao bem; se o fizermos aos outros, os de natureza mais fraca, ajudá-los-emos a libertarem-se das suas convicções erradas. Por aqui podes ver como são necessários os princípios básicos. Temos instintos em nós que nos fazem indolentes ante certas coisas, e atrevidos perante outras; ora, nem este atrevimento nem aquela indolência podem ser eliminados se primeiro não removermos as respectivas causas, ou seja, a admiração infundada ou o receio infundado.
Enquanto tivermos em nós esses instintos, bem poderás dizer: “estes são os teus deveres para com teu pai, ou para com os filhos,
Textos sobre Virtude
219 resultadosA Fronteira entre a Juventude e a Velhice
Creio que se pode traçar uma fronteira muito precisa entre a juventude e a velhice. A juventude acaba quando termina o egoísmo, a velhice começa com a vida para os outros. Ou seja: os jovens têm muito prazer e muita dor com as suas vidas, porque eles a vivem só para eles. Por isso todos os desejos e quedas são importantes, todas as alegrias e dores são vividas plenamente, e alguns, quando não vêem os seus desejos cumpridos, desperdiçam toda uma vida. Isso é a juventude. Mas para a maior parte das pessoas vem o tempo em que tudo se modifica, em que vivem mais para os outros, não por virtude, mas porque é assim. A maior parte constitui família. Pensa-se menos em nós próprios e nos nossos desejos quando se tem filhos. Outros perdem o egoísmo num escritório, na política, na arte ou na ciência. A juventude quer brincar, os adultos trabalhar.
Não há quem se case para ter filhos, mas quando chegam, modificamo-nos, e acabamos por perceber que tudo aconteceu por eles. Da mesma forma, a juventude gosta de falar na morte, mas nunca pensa nela; com os velhos acontece o contrário. Os jovens acreditam ser eternos e centram todos os desejos e pensamentos sobre si próprios.
O Grande Homem
A definição de «grande homem» está feita já, e com exactidão. O grande homem é aquele que pelo raciocínio atingiu uma maior soma de verdade, ou pela imaginação as maiores formas de beleza, ou pela acção os mais altos resultados, do que todos os seus contemporâneos na latitude do seu século. Esta obra superior em verdade, em beleza, em bondade ou utilidade, é produzida por um não sei quê que possui o grande homem, que se chama génio, cuja natureza não está suficientemente explicada mas que constitui uma força infinitamente maior que o simples talento, o simples gosto ou a simples virtude.
Imitar o Melhor Exemplo
Caminhado os homens quase sempre pelos caminhos já por outros percorridos, e tendendo, nas suas acções, a proceder por imitação, não podem, contudo, seguir inteiramente a mesma via nem alcançar a virtude daqueles que pretendem imitar. Por tal motivo, um homem avisado deve procurar seguir as vias percorridas por grandes homens e imitar aqueles que atingiram o mais elevado patamar de excelência, de modo que, se não pudermos igualar a sua virtude, deles vos fique, ao menos, o perfume do seu valor. É o que fazem os archeiros habilidosos, os quais, parecendo-lhes muito distante o alvo que desejam atingir, e, conhecendo bem as limitações de alcance do seu arco, fazem pontaria para um ponto muito mais alto do que o alvo, não para aí acertar com as suas flechas, mas, sim, para, com a ajuda de tão elevada mira, poderem bater o alvo pretendido.
Exercitar a Vontade Naquilo que Podemos Ter de Melhor
Ponho-me a pensar na quantidade dos que exercitam o físico, e na escassez dos que ginasticam a inteligência; na afluência que têm os gratuitos espectáculos desportivos, e na ausência de público durante as manifestações culturais; enfim, na debilidade mental desses atletas de quem admiramos as espáduas musculadas. E penso sobreutdo nisto: se o corpo pode, à força de treino, atingir um grau de resistência tal que permite ao atleta suportar a um tempo os murros e pontapés de vários adversários, que o torna apto a aguentar um dia inteiro sob um sol abrasador, numa arena escaldante, todo coberto de sangue – não será mais fácil ainda dar à alma uma tal robustez que a torne capaz de resistir sem ceder aos golpes da fortuna, capaz de erguer-se de novo ainda que derrubada e espezinhada?! De facto, enquanto o corpo, para se tornar vigoroso, depende de muitos factores materiais, a alma encontra em si mesma tudo quanto necessita para se robustecer, alimentar, exercitar. Os atletas precisam de grande quantidade de comida e bebida, de muitos unguentos, sobretudo de um treino intensivo: tu, para atingires a virtude, não precisarás de dispender um tostão em equipamento! Aquilo que pode fazer de ti um homem de bem existe dentro de ti.
Os Ciúmes Das Nossas Virtudes
Meu irmão, és feliz se só tens uma virtude e não várias: pois passarás mais facilmente a ponte.
É uma distinção ter muitas virtudes, mas é sorte bem dura; e não são poucos os que se têm ido matar ao deserto, cansados de serem combate e campo de batalha das suas próprias virtudes.
Meu irmão, serão um mal a guerra e as batalhas? Mas são males necessários, e é necessário que as tuas virtudes tenham ciúmes umas das outras e estejam desconfiadas umas das outras e se caluniem entre si.
Vê, cada uma das tuas virtudes é ávida de tudo possuir, cada uma quer que a totalidade da tua alma lhe sirva de arauto, quer toda a tua força na cólera, no ódio e no amor.
Cada uma das tuas virtudes é ciosa das outras, e o ciúme é uma coisa terrível. As próprias virtudes podem morrer de ciúme.
O que está cercado pela chama do ciúme acaba, como o escorpião, por voltar contra si mesmo o seu aguilhão envenenado.
Ai! meu irmão, nunca viste uma virtude caluniar-se e apunhalar-se a si própria?
O homem é um ser que deve superar-se, por isso necessitas amar as tuas virtudes –
Confissão
Trinta e nove anos. Meia vida passada, se isto se for aguentando, tomba daqui, tomba dali. E tudo por fazer! Comecei tarde, sem nenhuma preparação, e com defeitos horríveis, que tenho ido limando pouco a pouco, mas que resistem como fortalezas. Nasci afirmativo demais, puritano demais, uno demais, apesar duma timidez confrangedora, duma aceitação natural da volúpia e duma dispersão aflitiva a cada instante. Tenho medo dum polícia e sou capaz de enfrentar um exército; passo a vida a praticar virtudes que proíbo terminantemente aos outros; escrevo um poema, a dar uma consulta. De maneira que nunca consegui encontrar aquele equilíbrio criador onde julgo existir o pomar das grandes obras. Debato-me entre forças contraditórias, e ao cabo de cada livro sinto-me insatisfeito e culpado como um pecador que não cumpriu bem a sua penitência. Não tenho ambições fora da arte, e, dentro dela, só desejo conquistar a glória de a ter servido humilde e totalmente; mas não consegui ainda dar-lhe tudo, jogar a vida e a morte por ela. Para isso era preciso calcar aos pés o homem civil que sou, e não posso. Necessito de ter as minhas contas em dia como qualquer mortal honrado, e afligem-me os assuntos do mundo como casos pessoais.
Suicídio e Imortalidade
Está claro que o suicídio, quando se perdeu a ideia da imortalidade, torna-se de uma imprescindibilidade absoluta e inevitável para todo o homem que tenha alguma noção da sua superioridade sobre os animais. Pelo contrário, a imortalidade que nos promete uma vida eterna amarra o homem, por isso mesmo, mais fortemente à Terra. Poderá parecer que há aqui contradição; se há tanta vida, quer dizer, a imortal, além da terrena, porque estimar tanto esta última? Acontece o contrário; é em virtude da sua fé na imortalidade que o homem alcança o seu fim razoável na Terra. Sem fé na imortalidade quebram-se os laços que prendem o homem à Terra, tornando-se mais subtis, mais frouxos, e a perda do alto conceito da vida (ainda que se sinta apenas em forma de inconsciente pesar) leva, inevitávelmente, ao suicídio.
Quando tão indispensável se torna a fé na imortalidade para a vida do homem, que é o estado normal da humanidade, e, sendo assim, «não há dúvida de que existe também a imortalidade da alma humana». Numa palavra: que a ideia da imortalidade é a vida homem, que é o estado normal da humanidade, e, sendo fonte da verdade e a verdade consciência para a humanidade.
A Dependência é a Raiz de Todos os Males
O que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo? Nada. Nenhum animal depende do seu semelhante. Tendo porém o homem recebido o raio da Divindade a que se chama razão, qual foi o resultado? Ser escravo em quase toda a terra. Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se em toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado à sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o mundo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos gansos e cabras monteses, não teriam os Gengis Cãs e Tamerlões vassalos senão os próprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxiliá-los na velhice.
No estado natural de que gozam os quadrúpedes, aves e répteis, tão feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguém pensaria: para quê servidores se não tivésseis necessidade de nenhum serviço? Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter o seu vizinho menos forte que ele,
A Chama da Vida e o Fogo das Paixões
Nem sempre estar apaixonado é bom. A maior parte das paixões tomam conta da vontade e assumem o controlo do sentir e do pensar. Prometem a maior das libertações, mas escravizam quem desiste de si mesmo e a elas se submete.
A paixão é sofrimento, um furor que é o oposto da paz e do contentamento. Um vazio fulminante capaz das maiores acrobacias para se satisfazer. Mas que, como nunca se sacia, acaba por se consumir, por se destruir a si mesmo. Para ter paz precisamos de fazer esta guerra, na conquista do mais exigente de todos os equilíbrios: entre a monotonia de nada arriscar e a imprudência de entregar tudo sem uma vontade própria profunda. É essencial que saibamos desafiarmo-nos, por vezes, a um profundo desequilíbrio momentâneo. Afinal, quem nunca ousa está perdido, para sempre.
Há boas paixões. São as que trabalham como um fermento. De forma pacata, pacífica e paciente. Animam, mas não dominam. Orientam, mas não decidem. Iluminam, mas não cegam.Quase ninguém faz ideia da capacidade que cada um de nós tem para suportar e vencer grandes sofrimentos…
Por paixões comuns, há quem perca a cabeça, o coração e a alma.
Os que Morrem por Amor
Os que morrem por amor continuam a pertencer à lenda. Os seus funerais arrastam uma multidão piedosa, tal como decerto aconteceu na cidade de Verona, há seiscentos anos. Ainda que nesse tempo os costumes fossem bastante fáceis, a prática erótica da juventude era muito mais modesta. Reflectindo melhor, é de crer que a própria licença produzisse um tipo de pessoas orgulhosas da sua intimidade afectiva; o que, se não é virtude, algo se parece. Este orgulho da própria intimidade conduz a uma atitude hostil em relação a tudo o que pode burocratizar os sentimentos. Há um sociólogo inclinado a crer que existe muito de romantismo burocrático no amor moderno. É possível. E quando aparecem os contestatários dessa espécie de burocracia, como são os Romeus e Julietas do Candal, a cidade fica-lhes agradecida. No campo dos afectos trata-se da luta obstinada que resulta do choque entre a vida privada e o regime governativo; entre um corpo animado de impulsos e uma autoridade explicada por leis. Através de inquéritos feitos nos meios juvenis para inquirir das transformações que se efectuam no âmbito das relações afectivas, deparam-se declarações bastante confusas. Elas pairam entre uma sinceridade elementar que descura a experiência e teorias perfeitamente viciadas nos lugares-comuns do século.
A Dificuldade do Poder Obtido sem Esforço
Aqueles que, só pela mão da fortuna, de vulgares cidadãos se tornam príncipes alcançam o mando com pouca fadiga, mas só com muito esforço o conseguem manter. Não experimentam dificuldades na caminhada para o poder, parecendo que para lá vão voando. As dificuldades surgem depois de serem entronizados. É o que sucede com aqueles a quem é dado um estado a troco de dinheiro ou por graça de quem o concede (…) Os que assim sobem à condição de príncipe ficam dependentes da vontade e da fortuna de quem lhes proporcionou o trono, que são duas coisas assaz volúveis e instáveis, não sabendo nem podendo garantir a sua conservação. Não sabem – porque, a menos que seja um homem de grande habilidade e virtude, não é razoável que, tendo sempre vivido como vulgar cidadão, saiba comandar; não podem – porque não dispõem de forças que lhes possam ser amigas e fiéis. Além disto, os estados que surgem de repente, como todas as outras coisas da natureza que nascem e crescem rapidamente, não desenvolvem as raízes, o tronco e os ramos, sendo destruídos pelo primeiro temporal. Isto, a menos que aqueles que, como eu disse, de repente se tornaram príncipes possuam tanta virtude como a fortuna que tiveram quando o estado lhes caiu no regaço e saibam,
A Recompensa de Todas as Virtudes Reside na Sua Prática
Devemos fazer tudo no sentido de sermos tão gratos quanto possível. A gratidão é um bem que nos pertence a nós, assim como a justiça (ao contrário do que vulgarmente se crê) tira o seu valor mais de si mesma do que da aplicação aos outros. Cada um de nós ao ser útil aos outros, é útil a si mesmo. Não digo isto no sentido de cada um pretender ajudar quando é ajudado, proteger quando é protegido, ou no sentido de que um bom exemplo acaba por redundar em benefício do seu autor (tal como os maus exemplos recaem nos seus autores – e por isso ninguém tem pena das vítimas de injúrias que as próprias vítimas, por também as fazerem, mostram ser possíveis); quero, sim, dizer é que a recompensa de todas as virtudes reside na sua prática! Não é com vista a obter uma recompensa que nós as praticamos: o prémio de uma acção correcta é essa mesma acção! Eu não me mostro grato para que um outro, levado pelo meu exemplo, me faça um favor de melhor vontade, mas porque a gratidão provoca um sentimento da mais pura e bela alegria. Não me mostro grato porque isso me possa ser útil,
Do Juízo Estético
Toda a arte pressupõe regras na base das quais uma produção, se deve considerar-se artística, é representada, em primeiro lugar, como possível; mas o conceito das belas-artes não permite derivar o juízo sobre a beleza da produção de qualquer regra que tenha um conceito como princípio determinante, em virtude de pôr como fundamento um conceito do modo por que tal é possível. Assim, a arte do belo não pode inventar ela mesma a regra segundo a qual realizará a sua produção. Mas, como sem regra anterior um produto não pode ser artístico, é necessário que a natureza dê a regra de arte ao próprio sujeito (na concordância das suas faculdades), isto é, as belas-artes só podem ser o produto do génio.
Daí se conclui: 1º Que o génio é o talento de produzir aquilo de que se não pode dar regra determinada, mas não é a aptidão para o que pode ser apreendido consoante uma qualquer regra; portanto, a sua primeira característica é a originalidade. 2º Que as suas produções, visto que o absurdo também pode ser original, devem simultaneamente ser modelos, isto é, ser exemplares; por consequência, não sendo obras de imitação, têm de ser propostas à imitação das outras,
A Tranquilidade da Alma não se Alcança em Viagens
Pensas que só a ti isso sucedeu; admiras-te, como se fosse um caso raro, de após uma tão grande viagem e uma tão grande variedade de locais visitados não teres conseguido dissipar essa tristeza que te pesa na alma!? Deves é mudar de alma, não de clima. Ainda que atravesses a vastidão do mar, ainda que, como diz o nosso Vergílio, as costas, as cidades desapareçam no horizonte, os teus vícios seguir-te-ão onde quer que tu vás. Do mesmo se queixou um dia alguém a Sócrates: «Porquê admirar-te da inutilidade das tuas viagens,» – foi a resposta, – «se para todo o lado levas a mesma disposição? A causa que te aflige é exactamente a mesma que te leva a partir!» De facto, em que pode ajudar a mudança de local, ou o conhecimento de novas paisagens e cidades? Toda essa agitação carece de sentido. Andares de um lado para o outro não te ajuda em nada, porque andas sempre na tua própria companhia. Tens de alijar o peso que tens na alma; antes disso não há terra alguma que te possa dar prazer!
Temos de viver com essa convicção: não nascemos destinados a nenhum lugar particular, a nossa pátria é o mundo inteiro!
O Terror do Optimismo
A verdadeira razão por que todos nós pensamos tão bem dos outros é que todos temos medo de nós próprios. A base do optimismo é o puro terror. Julgamos que somos generosos porque atribuímos ao nosso vizinho a posse daquelas virtudes que pensamos poderem vir a beneficiar-nos. Louvamos o banqueiro para podermos exceder o nosso crédito, e encontramos bons princípios no assaltante na esperança de que nos poupe as carteiras. Acredito em tudo o que disse. Tenho o maior dos desprezos pelo optimismo.
Felicidade e Virtude
Como, ao que parece, há muitos fins e podemos buscar alguns em vista de outros: por exemplo, a riqueza, a música, a arte da flauta e, em geral, todos aqueles fins que podem denominar-se instrumentos, é evidente que nenhum desses fins é perfeito e definitivo por si mesmo. Mas o sumo bem deve ser coisa perfeita e definitiva. Por conseguinte, se existe uma só e única coisa que seja definitiva e perfeita, ela é precisamente o bem que procuramos; e se há muitas coisas deste género, a mais definitiva entre elas será o bem. Mas, em nosso entender, o bem que apenas deve buscar-se por si mesmo é mais definitivo que aquele que se procura em vista de outro bem; e o bem que não deve buscar-se nunca com vista noutro bem é mais definitivo que os bens que se buscam ao mesmo tempo por si mesmos e por causa desse bem superior; numa palavra, o perfeito, o definitivo, o completo, é o que é eternamente apetecível em si, e que nunca o é em vista de um objecto distinto dele.
Eis aí precisamente o carácter que parece ter a felicidade; buscamo-la por ela e só por ela, e nunca com mira em outra coisa.
Com os Costumes andam os Aforismos
Com os costumes andam os aforismos. Assim, eis que eles tomam um carácter mais criticador e vibrante, isto na linguagem de Karl Kraus, homem sagaz e ventríloquo de certas causas que a sociedade não confia à voz pública.
Ele diz, por exemplo: «As mulheres, no Oriente, têm maior liberdade. Podem ser amadas». Ou então: «A vida de família é um ataque à vida privada». Ou ainda: «A democracia divide os homens em trabalhadores e preguiçosos. Não está destinada para aqueles que não têm tempo para trabalhar». Tudo isto, como axioma, lembra Bernard Shaw, esse inglês azedo e endiabrado cujo Manual do Revolucionário fez o encanto da nossa adolescência.
Todavia, o aforimo do homem de letras, se impressiona, quase nunca comove ninguém. O autêntico aforismo não é uma arte – é uma espécie de pastorícia cultural. Não está destinado a divertir nem a chocar as pessoas, mas, acima de tudo, propõe-se transmitir uma orientação. É uma lição, e não o pretexto para uma pirueta.
Os aforismos e paradoxos de Karl Kraus têm esse sabor irreverente que se diferencia da sabedoria, porque há algo de precipitado na sua confissão. Precisam de ser situados num estado de espírito, para serem aceites e compreendidos;
Onde Há Inveja, não Há Amizade
Grande trabalho é querer fazer alegre rosto quando o coração está triste: pano é que não toma nunca bem esta tinta; que a Lua recebe a claridade do Sol, e o rosto, do coração. Nada dá quem não dá honra no que dá: não tem que agradecer quem, no que recebe, a não recebe; porque bem comprado vai o que com ela se compra. Nada se dá de graça o que se pede muito. Está certo! Quem não tem uma vida tem muitas. Onde a razão se governa pela vontade, há muito que praguejar, e pouco que louvar. Nenhuma cousa homizia os homens tanto consigo como males de que se não guardaram, podendo. Não há alma sem corpo, que tantos corpos faça sem almas, como este purgatório a que chamais honra; donde muitas vezes os homens cuidam que a ganham, aí a perdem. Onde há inveja, não há amizade; nem a pode haver em desigual conversação. Bem mereceu o engano quem creu mais o que lhe dizem que o que viu. Agora, ou se há-de viver no mundo sem verdade, ou com verdade sem mundo. E para muito pontual, perguntai-lhe de onde vem; vereis que algo tiene en el cuerpo,