Passagens sobre Tinta

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Frases sobre tinta, poemas sobre tinta e outras passagens sobre tinta para ler e compartilhar. Leia as melhores citações em Poetris.

Em Cruz nĂŁo Era Acabado

As crianças viravam as folhas
dos dias enevoados
e da página do Natal
nasciam os montes prateados

da infância. Intérmina, a mãe
fazia o bolo unido e quente
da noite na boca das crianças
acordadas de repente.

Torres e ovelhas de barro
que do armário saíam
para formar a cidade
onde o menino nascia.

Menino pronunciado
como uma palavra vagarosa
que terminava numa cruz
e começava numa rosa.

Natal bordado por tias
que teciam com seus dedos
estradas que entĂŁo havia
para a capital dos brinquedos.

E as crianças com a tinta invisível
do medo de serem futuro
escreviam os seus pedidos
no muro que dava para o impossĂ­vel,

chão de estrelas onde dançavam
a sua louca identidade
de serem no dicionário
da dor futura: saudade.

Até o Fim

Até o fim com esta garganta
e estes olhos
líquidos, até o fim
com estas mĂŁos
trémulas.

Até o fim com estes pés exaustos
e estes lábios costurados
ao pé da noite. Até o fim
sem dizer nada.

Até o fim estes canais premindo
o sangue.
Até o fim o obrigatório oxigénio
sobrevivĂŞncia
no abstracto
difĂ­cil ar.

Até o fim a tinta ilesa do amor
na alma,
até que quebrem as epidermes
desta mentira,
e o fim prossiga
até o fim.

A Vida Anterior

Longos anos vivi sob um pĂłrtico alto
De gigantes pilares, nobres, dominadores,
Que a luz, vinda do mar, esmaltava de cores,
Tornando-o semelhante Ă s grutas de basalto.

Chegavam até mim os ecos da harmonia
Do orfeĂŁo colossal das ondas chamejantes,
Ligando a sua voz Ă s tintas deslumbrantes
Da luz crepuscular que em meus olhos fugia.

Em meio do esplendor do céu, do mar, dos lumes,
Foi-me dado gozar, voluptuosas calmas!
Escravos seminus, rescendendo perfumes,

Minha fronte febril refrescavam com palmas,
E tinham por missĂŁo apenas descobrir
A misteriosa dor que eu andava a carpir

Tradução de Delfim Guimarães

SolidĂŁo

Aproximo-me da noite
o silĂŞncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por Ăłleo frio e espesso

Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidĂŁo
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mĂŁos
solto o meu delĂ­rio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou

Mas os ruĂ­dos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna

Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
Ă s rochas do tempo

Tudo o que Somos é Ficção

Há que entender que tudo o que somos é ficção.
Pessoas atrás de pessoas pedem-me conselhos. Acreditam que o que escrevo me torna em alguém especial, capaz de lhes entender o que fazem, o que sentem, até o que escrevem. Fico perdido, sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. E é por isso que escrevo. Escrever é estar perdido e procurar, a cada frase, um caminho. Ou um simples sinal de que pode haver um caminho, de que pode haver uma esperança. Escrever é procurar a esperança, todos os dias, no que não existe, no que se escreve para ver se existe. Não sou escritor, nunca fui escritor, não quero ser escritor. Sou apenas o gajo que escreve porque tem de escrever, porque os dias exigem que escreva, porque uma urgência qualquer o obriga a escrever. Escrevo como necessidade biológica, e às vezes custa tanto ter de escrever. Não dói mas custa, é uma dor de fora para dentro, como se as letras saíssem da pele, do por dentro dos ossos. E a literatura. O que raios é a literatura? Estou-me nas tintas para a literatura. Não quero escrever literatura, não quero os intelectuais do meu lado.

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A Vida Ă© LĂ­quida

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mĂłrula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livro da lĂ­ngua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha pĂşmblea, me casaco rosso
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, gĂłticas, altas de corpo e copos.
A vida Ă© crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é liquída.

Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos Ă  mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraĂ­so. O sinistro das horas
Vai se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.

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Se, com uma gota de tinta pode-se assinar um tratado de paz entre dois povos, imagine com o conteĂşdo de um tinteiro, quantos tratados pode-se assinar para toda a humanidade!

Cromo

andamos pelo mundo
experimentando a morte
dos brancos cabelos das palavras
atravessamos a vida com o nome do medo
e o consolo dalgum vinho que nos sustém
a urgĂŞncia de escrever
nĂŁo se sabe para quem

o fogo a seiva das plantas eivada de astros
a vida policopiada e distribuĂ­da assim
atravĂ©s da lĂ­ngua… gratuitamente
o amargo sabor deste paĂ­s contaminado
as manchas de tinta na boca ferida dos tigres de papel

enquanto durmo Ă  velocidade dos pipelines
esboço cromos para uma colecção de sonhos lunares
e ao acordar… a incoerente cidade odeia
quem deveria amar

o tempo escoa-se na mĂşsica silente deste mar
ah meu amigo… como invejo essa tarde de fogo
em que apetecia morrer e voltar