O DilĂşvio
Há muitos dias já, há já bem longas noites
que o estalar dos vulcões e o atroar das torrentes
ribombam com furor, quais rábidos açoites,
ao crebro rutilar dos coriscos ardentes.Pradarias, vergéis, hortos, vinhedos, matos,
tudo desapar’ceu ao rude desabar
das constantes, hostis, raivosas cataratas,
que fizeram da Terra um grande e torvo mar.Ă€ flor do torvo mar, verde como as gangrenas,
onde homens e leões bóiam agonizantes,
imprecando com fĂşria e angĂşstia, erguem-se apenas,
quais monstros colossais, as montanhas gigantes.É aà que, ululando, os homens como as feras
refugiar-se vão em trágicos cardumes,
O mar sobe, o mar cresce. e os homens e as panteras,
crianças e reptis caminham para os cumes.Os fortes, sem haver piedade que os sujeite,
arremessam ao chĂŁo pobres velhos cansados.
e as mães largam. cruéis, os filhinhos de leite,
que os que seguem depois pisam, alucinados.Um sinistro pavor; crescente e sufocante,
desnorteia, asfixia a turba pertinaz:
ouvem-se urros de dor, e os que vĂŁo adiante
lançam pedras brutais aos que ficam pra trás.
Passagens sobre Trovões
34 resultadosO Tempo Gastador de Mil Idades
O Tempo gastador de mil idades,
Que na décima esfera vive e mora,
NĂŁo descansa co’a FĂşria tragadora,
De exercitar, feroz, suas crueldades.Ele destrĂłi as Ănclitas cidades,
As egĂpcias pirâmides devora:
Sua dentada fouce assoladora,
Rompe forças viris, destrĂłi beldades.O bronze, o ouro, o rĂgido diamante,
A sua mĂŁo pesada amolga e gasta
Levando tudo ao nada, em giro errante.Como trovĂŁo feroz rugindo arrasta,
Quanto cobre na Terra o sol radiante,
SĂł da Virtude com temor se afasta.
O Ă“dio liga mais os IndivĂduos que a Amizade
O Ăłdio, a inveja e o desejo de vingança ligam muitas vezes mais dois indivĂduos um ao outro do que o podem fazer o amor e a amizade. Pois está em causa a comunidade de interesses interiores ou exteriores e a alegria que se sente nessa comunidade – onde Ă© muitas vezes determinada a essĂŞncia das relações positivas entre os indivĂduos: o amor e a amizade – Ă© sempre relativa e nĂŁo Ă© em nenhum caso um estado de alma permanente; mas as relações negativas, essas sĂŁo, a maior parte das vezes, absolutas e constantes. O Ăłdio, a inveja e o desejo de vingança tĂŞm, poder-se-ia dizer, o sono mais ligeiro do que o amor. O menor sopro os desperta, enquanto que o amor e a amizade continuam tranquilamente a dormir, mesmo sob o trovĂŁo e os relâmpagos.
O Divino
Nobre seja o homem,
Caridoso e bom!
Pois isso apenas
É que o distingue
De todos os seres
Que conhecemos.GlĂłria aos incĂłgnitos
Mais altos seres
Que pressentimos!
Que o homem se lhes iguale!
Seu exemplo nos ensine
A crer naqueles!Pois insensĂvel
É a natureza:
O sol ‘spalha luz
Sobre maus e bons,
E ao criminoso
Brilham como ao santo
A lua e as ‘strelas.Vento e torrentes,
TrovĂŁo e saraiva
Rugem seu caminho
E agarram,
Velozes passando,
Um apĂłs outro.Tal a sorte Ă s cegas
Lança mãos à turba
E agarra os cabelos
Do menino inocente
Ou a fronte calva
Do velho culpado.Por eternas leis,
Grandes e de bronze,
Temos todos nĂłs
De fechar os cĂrculos
Da nossa existĂŞncia.Mas somente o homem
Pode o impossĂvel:
SĂł ele distingue,
Escolhe e julga;
E pode ao instante
Dar duração.Só ele é que pode
Premiar o bom,
Castigar o mau,
Poema do homem-rĂŁ
Sou feliz por ter nascido
no tempo dos homens-rĂŁs
que descem ao mar perdido
na doçura das manhãs.
Mergulham, imponderáveis,
por entre as águas tranquilas,
enquanto singram, em filas,
peixinhos de cores amáveis.
VĂŁo e vĂŞm, serpenteiam,
em compassos de ballet.
Seus lentos gestos penteiam
madeixas que ninguém vê.Com barbatanas calçadas
e pulmões a tiracolo,
roçam-se os homens no solo
sob um céu de águas paradas.Sob o luminoso feixe
correm de um lado para outro,
montam no lombo de um peixe
como no dorso de um potro.Onde as sereias de espuma?
Tritões escorrendo babugem?
E os monstros cor de ferrugem
rolando trovões na bruma?Eu sou o homem. O Homem.
Desço ao mar e subo ao céu.
Não há temores que me domem
É tudo meu, tudo meu.
Teu grito de guerra
Retumbe aos ouvidos
D’imigos transidos
Por vil comoção;
E tremam d’ouvi-lo
Pior que o sibilo
Das setas ligeiras,
Pior que o trovĂŁo.
Na ConfusĂŁo Do Mais Horrendo Dia
Na confusĂŁo do mais horrendo dia,
Painel da noite em tempestade brava,
O fogo com o ar se embaraçava
Da terra e água o ser se confundia.Bramava o mar, o vento embravecia
Em noite o dia enfim se equivocava,
E com estrondo horrĂvel, que assombrava,
A terra se abalava e estremecia.Lá desde o alto aos côncavos rochedos,
Cá desde o centro aos altos obeliscos
Houve temor nas nuvens, e penedos.Pois dava o Céu ameaçando riscos
Com assombros, com pasmos, e com medos
Relâmpagos, trovões, raios, coriscos
A Esperança da Humanidade
A vida polĂtica, porĂ©m, veio como um trovĂŁo desviar-me dos meus trabalhos. Regressei uma vez mais Ă multidĂŁo.
A multidĂŁo humana foi a maior lição da minha vida. Posso chegar a ela com a inerente timidez do poeta, com o receio do tĂmido; mas, uma vez no seu seio, sinto-me transfigurado. Sou parte da essencial maioria, sou mais uma folha da grande árvore humana.SolidĂŁo e multidĂŁo continuarĂŁo a ser deveres elementares do poeta do nosso tempo. Na solidĂŁo, a minha vida enriqueceu-se com a batalha da ondulação no litoral chileno. Intrigaram-me e apaixonaram-me as águas combatentes e os penhascos combatidos, a multiplicação da vida oceânica, a impecável formação dos «pássaros errantes», o esplendor da espuma marĂtima.
Mas aprendi muito mais com a grande marĂ© das vidas, com a ternura vista em milhares de olhos que me viam ao mesmo tempo. Pode esta mensagem nĂŁo ser possĂvel a todos os poetas, mas quem a tenha sentido guardá-la-á no coração, desenvolvendo-a na sua obra.
É memorável e desvanecedor para o poeta ter encarnado para muitos homens, durante um minuto, a esperança.
Ermida
Lá onde a calma e a placidez existe,
Sobre as colinas que o vergel encobre,
Aquela ermida como está tão pobre,
Aquela ermida como está tão triste.A minha musa, sem falar, assiste,
Do meio-dia ante o aspecto nobre,
O vago, estranho e murmurante dobre
Daquela ermida que aos trovões resisteE as gargalhadas funéreas, sombrias,
Dos crus invernos e das ventanias,
Do temporal desolador e forte.Daquela triste esbranquiçada ermida,
Que me recorda, me parece a vida
Jogada às magoas e ilusões da sorte.
Aos Mesmos
De insĂpida sessĂŁo no inĂştil dia
Juntou-se do Parnaso a galegage;
Em frase hirsuta, em gĂłtica linguage,
Belmiro um ditirambo principia.Taful que o portuguĂŞs nĂŁo lhe entendia,
Nem ao resto da cĂ´mica salsage,
Saca o soneto que lhe fez Bocage,
E conheceu-se nele a Academia.Dos sĂłcios o pior silvou qual cobra,
Desatou-se em trovões, desfez-se em raios,
Dando ao triste Bocage o que lhe sobra.Fez na calúnia vil cruéis ensaios,
E jaz com grandes créditos a obra
Entre mĂŁos de marujos e lacaios.
Seja rápido como um trovão que retumba antes que se tenha podido tapar os ouvidos e veloz como o relâmpago que brilha antes de ter podido piscar.
O Coração – II
A solidĂŁo Ă© perfeita como um rasgo entre
as nuvens, ao Ăşltimo sonho. A solidĂŁo
que se cala em teu fundo e vai envelhecendo
na terra perdida do som descompassado.Te guardas na intimidade dos armários,
onde a paz Ă© negra e se desagrega a luz.
Nunca foste mais do que uma ficção, matriz
de riso e sombra, um poço verde, teoremade ilusões, engrenagem de poentes roxos.
E, agora, frouxo, já nada designas ou
desenhas. És, apenas, testemunha efĂ©merae longĂnqua, trovĂŁo engolido de Deus,
fingidor ferido de doces cantos, mentira
precária nas cordas de uma harpa febril.
Deus, Infinito Ser
Deus, Infinito ser, nunca criado,
Sem princĂpio, nem fim, na Majestade
Que no trono da Eterna Divindade
Tens o Mundo num dedo dependurado:Tu estavas em Ti, nĂŁo foste nado,
O teu Ser era a tua Imensidade,
Tu tiveste por berço a Eternidade,
Tu, sem tempo, em Ti mesmo eras gerado!Tu és um fogo que arde sem matéria,
Tu és perpétua luz, que não desmaia
Fulgindo, sem cessar, na sala etérea!Tu és um mar de amor, que não tem praia,
Trovão assustador da esfera aérea,
Rei dum Reino Imortal, que nĂŁo tem raia!…
NĂŁo Ă© preciso ter olhos abertos para ver o sol, nem Ă© preciso ter ouvidos afiados para ouvir o trovĂŁo. Para ser vitorioso vocĂŞ precisa ver o que nĂŁo está visĂvel.
Sátira
Besta e mais besta! O positivo Ă© nada…
(Perdoa, se em gramática te falo,
Arte que ignoras, como ignoras tudo.)
Besta e mais besta! Na palavra embirro;
Que a besta anexa ao mais teu ser define.Dás-me louvor servil na voz do prelo,
Grande me crĂŞs, proclamas-me famoso,
Excelso, transcendente, incomparável,
Confessas que d’Elmano a fĂşria temes…
E, débil estorninho, águias provocas,
Aves de Jove, que o corisco empunham!És de rábula vil corrupta imagem;
Tu vendes o louvor, como ele as partes,
Mas ele na enxovia infâmias paga,
E tu, com tĂşstios, que aos caloiros pilhas,
Compras gravatas, em que a tromba enorme
Sumas ao dia, que de a ver se embrusca,
Qual em tenra mĂŁozinha esconde a face
Mimoso infante de papões vexado.
Útil descuido aos cárceres te furta,
À digna habitação de ti saudosa
(Digo, o Castelo), estância equivalente
Aos méritos morais, que em ti reluzem.De saloios vinténs larápio sujo,
A glĂłria do teu Ăłdio restitui
A quem no teu louvor desacreditas.
Se honrada pelos sábios d’Ulisseia
(D’Ulisseia nĂŁo sĂł,
Eu sou metal, raio, relâmpago e trovão.
Mensagem – Mar PortuguĂŞs
MAR PORTUGUĂŠS
Possessio Maris
I. O Infante
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.Quem te sagrou criou-te portuguĂŞs.
Do mar e nĂłs em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!II. Horizonte
Ă“ mar anterior a nĂłs, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
’Splendia sobre as naus da iniciação.Linha severa da longĂnqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves,
Tive um Cavalo de CartĂŁo
Mulher. A tua pele branca foi um verão que quis viver e me foi negado. Um caminho que não me enganou. Enganou-me a luz e os olhos foscos das manhãs revividas. Enganou-me um sonho de poder ser o filho que fui, a correr pelos campos todo o dia, a medir as searas pelo tamanho dos braços abertos; enganou-me um sonho de poder ser o filho que fui no teu homem e no teu rosto, no teu filho, nosso. Não há manhãs para reviver, sei-o hoje. Não se podem construir dias novos sobre manhãs que se recordam. Inventei-te talvez, partindo de uma estrela como todas estas. Quis ter uma estrela e dar-lhe as manhãs de julho. As grandes manhãs de julho diante de casa e a minha mãe a acabar o almoço bom e o meu pai a chegar e a ralhar, sem ser a sério, por o almoço não estar pronto e eu sentado na terra, talvez a fazer um barroco, talvez a brincar com o cavalo de cartão. Tive um cavalo de cartão. Nunca te contei, pouco te contei, mas tive um cavalo de cartão. Brincava com ele e era bonito. Gostava muito dele. Tanto. Tanto. Tanto. Quando o meu pai mo trouxe,
Deixai a Vida aos Crentes Mais Antigos
VĂłs que, crentes em Cristos e Marias,
Turvais da minha fonte as claras águas
SĂł para me dizerdes
Que há águas de outra espécieBanhando prados com melhores horas
Dessas outras regiões pra que falar-me
Se estas águas e prados
SĂŁo de aqui e me agradam?Esta realidade os deuses deram
E para bem real a deram externa.
Que serĂŁo os meus sonhos
Mais que a obra dos deuses?Deixai-me a Realidade do momento
E os meus deuses tranqĂĽilos e imediatos
Que nĂŁo moram no Vago
Mas nos campos e rios.Deixai-me a vida ir-se pagĂŁmente
Acompanhada pelas avenas tĂŞnues
Com que os juncos das margens
Se confessam de PĂŁ.Vivei nos vossos sonhos e deixai-me
O altar imortal onde Ă© meu culto
E a visĂvel presença
Os meus prĂłximos deuses.InĂşteis procos do melhor que a vida,
Deixai a vida aos crentes mais antigos
Que a Cristo e a sua cruz
E Maria chorando.Ceres, dona dos campos, me console
E Apolo e VĂŞnus,
Sol aos pontões, chuva ou trovões.