A Casa Da Rua Abílio
A casa que foi minha, hoje é casa de Deus.
Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus,
Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade
Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidadeDeixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus.
Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus;
São as freiras rezando. Entre os ferros da grade,
Espreitando o interior, olha a minha saudade.Um sussurro também, como esse, em sons dispersos,
Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns talvez ainda os ecos falaram,E em seu surto, a buscar o eternamente belo,
Misturados à voz das monjas do Carmelo,
Subirão até Deus nas asas da oração.
Passagens sobre Verso
380 resultadosA um Poeta Morto
Quando a primeira vez a harmonia secreta
De uma lira acordou, gemendo, a terra inteira,
– Dentro do coração do primeiro poeta
Desabrochou a flor da lágrima primeira.E o poeta sentiu os olhos rasos de água;
Subiu-lhe â boca, ansioso, o primeiro queixume:
Tinha nascido a flor da Paixão e da Mágoa,
Que possui, como a rosa, espinhos e perfume.E na terra, por onde o sonhador passava,
Ia a roxa corola espalhando as sementes:
De modo que, a brilhar, pelo solo ficava
Uma vegetação de lágrimas ardentes.Foi assim que se fez a Via Dolorosa,
A avenida ensombrada e triste da Saudade,
Onde se arrasta, à noite, a procissão chorosa
Dos órfãos do carinho e da felicidade.Recalcando no peito os gritos e os soluços,
Tu conheceste bem essa longa avenida,
– Tu que, chorando em vão, te esfalfaste, de bruços,
Para, infeliz, galgar o Calvário da Vida.Teu pé também deixou um sinal neste solo;
Também por este solo arrastaste o teu manto…
E, ó Musa, a harpa infeliz que sustinhas ao colo,
Sonho que um verso meu tem claridade para encher o mundo! E que deleita mesmo aqueles que morrem de saudade! Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Às Vezes Entre a Tormenta
Às vezes entre a tormenta,
quando já umedeceu,
raia uma nesga no céu,
com que a alma se alimenta.E às vezes entre o torpor
que não é tormenta da alma,
raia uma espécie de calma
que não conhece o langor.E, quer num quer noutro caso,
como o mal feito está feito,
restam os versos que deito,
vinho no copo do acaso.Porque verdadeiramente
sentir é tão complicado
que só andando enganado
é que se crê que se sente.Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham
folhas caídas que secam.
Horas Mortas
Breve momento após comprido dia
De incômodos, de penas, de cansaço
Inda o corpo a sentir quebrado e lasso,
Posso a ti me entregar, doce Poesia.Desta janela aberta, à luz tardia
Do luar em cheio a clarear no espaço,
Vejo-te vir, ouço-te o leve passo
Na transparência azul da noite fria.Chegas. O ósculo teu me vivifica
Mas é tão tarde! Rápido flutuas
Tornando logo à etérea imensidade;E na mesa em que escrevo apenas fica
Sobre o papel – rastro das asas tuas,
Um verso, um pensamento, uma saudade.
Soneto 252 Qualitativo
Repito que um é dote, dois é dom,
mas três já é defeito, tenha dó!
Camões fez “Alma minha” e o do Jacó:
Terceiro é mui difícil ser tão bom.A tanto inda acrescento, alto e bom som:
Falar de sentimento, por si só,
não faz de nenhum verso um pão-de-ló,
nem temas de bom tom são só bombom.Fazer soneto às pencas, outrossim,
não dá patente máxima a ninguém,
nem livra alguém do nível do ruim.Fiquemos no bom senso, que mantém
a média de dois bons, até pra mim,
que, perto de Camões, sou muito aquém.
Antes De Conhecer-Te, Eu Já Te Amava
Antes de conhecer-te, eu já te amava.
Porque sempre te amei a vida inteira:
Eras a irmã, a noiva, a companheira,
A alma gêmea da minha que eu sonhava.Com o coração, à noite, ardendo em lava
Em meus versos vivias, de maneira
Que te contemplo a imagem verdadeira
E acho a mesma que outrora contemplava.Amo-te. Sabes que me tens cativo.
Retribuis a afeição que em mim fulgura,
Transfigurada nos anseios da Arte.Mas, se te quero assim, por que motivo
Tardaste tanto em vir, que hoje é loucura,
Mais que loucura, um crime desejar-te?
Hoje declarei em casa de uns amigos que a maior prova de amor que um poeta pode dar a uma mulher é a sua intimidade. Escrever versos diante dela é qualquer coisa como parir com um Cristo à cabeceira da cama.
Até que um Dia…
Meus versos eram rosas, lírios, heras,
borboletas, regatos, cotovias
cantando suas doces melodias,
anjos, sereias, ninfas e quimeras.Meus versos eram pombas entre as feras
e, na festa das horas e dos dias,
ia dançando penas e alegrias
e o ano tinha quatro primaveras.E a festa continua… é também festa
o cardo e a urze, o tojo, a murta, a giesta,
a chuva no beiral, o vento Norte,o gosto a mar, a lágrimas, a sal,
até que um dia a vida, a bem ou mal,
exausta de cantar me empreste à morte.
A Poesia não se Inventou para Cantar o Amor
A poesia não se inventou para cantar o amor — que de resto não existia ainda quando os primeiros homens cantaram. Ela nasceu com a necessidade de celebrar magnificamente os deuses, e de conservar na memória, pela sedução do ritmo, as leis da tribo. A adoração ou captação da divindade e a estabilidade social, eram então os dois altos e únicos cuidados humanos: — e a poesia tendeu sempre, e tenderá constantemente a resumir, nos conceitos mais puros, mais belos e mais concisos, as ideias que estão interessando e conduzindo os homens. Se a grande preocupação do nosso tempo fosse o amor — ainda admitiríamos que se arquivasse, por meio das artes da imprensa, cada suspiro de cada Francesca. Mas o amor é um sentimento extremamente raro entre as raças velhas e enfraquecidas. Os Romeus, as Julietas (para citar só este casal clássico) já não se repetem nem são quase possíveis nas nossas democracias, saturadas de cultura, torturadas pela ansia do bem-estar, cépticas, portanto egoístas, e movidas pelo vapor e pela electricidade. Mesmo nos crimes de amor, em que parece reviver, com a sua força primitiva e dominante, a paixão das raças novas, se descobrem logo factores lamentavelmente alheios ao amor,
Tortura
Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
– E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento! …Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
– E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento …São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!
A Jovem Cativa
(André Chenier)
— “Respeita a foice a espiga que desponta;
Sem receio ao lagar o tenro pâmpano
Bebe no estio as lágrimas da aurora;
Jovem e bela também sou; turvada
A hora presente de infortúnio e tédio
Seja embora: morrer não quero ainda!De olhos secos o estóico abrace a morte;
Eu choro e espero; ao vendaval que ruge
Curvo e levanto a tímida cabeça.
Se há dias maus, também os há felizes!
Que mel não deixa um travo de desgosto?
Que mar não incha a um temporal desfeito?Tu, fecunda ilusão, vives comigo.
Pesa em vão sobre mim cárcere escuro,
Eu tenho, eu tenho as asas da esperança:
Escapa da prisão do algoz humano,
Nas campinas do céu, mais venturosa,
Mais viva canta e rompe a filomela.Deve acaso morrer ? Tranqüila durmo,
Tranqüila velo; e a fera do remorso
Não me perturba na vigília ou sono;
Terno afago me ri nos olhos todos
Quando apareço, e as frontes abatidas
Quase reanima um desusado júbilo.Desta bela jornada é longe o termo.
Saudades e amarguras
Tenho eu todos os dias,
Não podem pois adejar
Em meus versos, alegrias.Saudades e amarguras
Tenho eu todas as horas,
Quem noites só conheceu,
Não pode cantar auroras.
Musa Infeliz
Todo o cuidado nestas rimas ponho;
Musa, peço-te, pois, que me remetas
Versos que tenham rútilas facetas,
E não revelem trovador bisonho.Meia noite bateu. Sai risonho…
Brilhava – oh, musa, não me comprometas! –
O mais belo de todos os planetas
N’um céu que parecia um céu de sonho.O mais belo de todos os prazeres
Gozei, à doce luz dos olhos pretos
Da mais bela de todas as mulheres!Pobres quartetos! míseros tercetos!…
Musa, musa infeliz, dar-me não queres.
O mais belo de todos os sonetos!…
Que Preceitos Ministrar com o Nosso Semelhante?
Passemos a outra questão: o modo de tratarmos com o nosso semelhante. Como devemos agir, que preceitos ministrar? Que não derramemos sangue humano? Ao nosso semelhante devemos fazer o bem: aconselhar a não lhe fazer mal, que ridículo! Até parece que encontrar algum homem que não seja uma fera para os outros já é coisa merecedora de encómios… Vamos aconselhar a que se estenda a mão ao náufrago, se indique o caminho a quem anda perdido, se divida o pão com o esfomeado? Mas para que hei-de eu enumerar todos os actos que devemos ou não devemos praticar quando posso numa só frase resumir todos os nossos deveres para com os outros? Tudo quanto vês, este espaço em que se contém o divino e o humano, é uno, e nós não somos senão os membros de um vasto corpo. A natureza gerou-nos como uma só família, pois nos criou da mesma matéria e nos dará o mesmo destino; a natureza faz-nos sentir amor uns pelos outros, e aponta-nos a vida em sociedade. A natureza determinou tudo quanto é lícito e justo; pela própria lei da natureza, é mais terrível fazer o mal do que sofrê-lo; em obediência à natureza, as nossas mãos devem estar prontas a auxiliar quem delas necessite.
Viver é não Saber que se Vive
Ponho-me, às vezes, a olhar para o espelho e a examinar-me, feição por feição: os olhos, a boca, o modelado da fronte, a curva das pálpebras, a linha da face… E esta amálgama grosseira e feia, grotesca e miserável, saberia fazer versos? Ah, não! Existe outra coisa… mas o quê? Afinal, para que pensar? Viver é não saber que se vive. Procurar o sentido da vida, sem mesmo saber se algum sentido tem, é tarefa de poetas e de neurasténicos. Só uma visão de conjunto pode aproximar-se da verdade. Examinar em detalhe é criar novos detalhes. Por debaixo da cor está o desenho firme e só se encontra o que se não procura. Porque me não esqueço eu de viver… para viver?
Milagre De Amor
Que mimporta, meu amor, a poesia que tanto
te preocupa porque a fiz antes de ti ?
Hoje… para não ver os teus olhos em pranto
por Deus que eu rasgaria os versos que escrevi…Hoje, já não são meus… Como que por encanto
estes poemas que fiz, que sonhei, que vivi,
são estranhos que seguem cantando o meu canto
a falarem de um velho mundo, que esqueci…De repente a mudança é tão grande, é tamanha,
que o passado se esvai numa sombra perdida,
e a minha própria voz soa falsa e estranha…Óh Milagre de Amor… ( Que por louco me tomem!)
Mas sinto uma alma nova em mim… tenho oura vida!!
E um novo coração no peito… e sou outro homem!
Graça
Eram dois, numa cama, lado a lado;
Eram dois, separados e diversos;
Mas unia-os o fado
De poderem ter filhos e ter versos.Eram dois a dormir,
Sem sonharem, sequer,
Que a mesma seiva astral pode cair
Num ventre de Poeta ou de Mulher.
Anoitece em Inferno a Minha Casa
Anoitece em inferno a minha casa.
Fico com este começo de verso
a serenar a exaltação de não dizer nada.
Deixem-me com este sorriso a morrer
por uma sílaba mais real onde um verso
me sossegue
com unhas de lama e sangue,
como garras.
Anoitece em inferno a minha casa.
Fica a certeza de não ter fim o que
de inutilidades se basta,
ou apenas o instante em que,
por um verso, eu fui
à outra parte da casa.
Acto de Contrição
Pela luz rara da garagem dois vultos
vão pôr o lixo. São velhos desconhecidos. Um
ao outro dão passagem (a
máscara de um cumprimento) esquivos na
escatológica arqueologia das misérias.
Homens de lixo na mão: exímios
a ocultar
versos da vida doméstica (quando
o gesto liso cabe ao avental abundante que os
devolve a casa). Há
em todo esse agravo uma redenção ferida
(um juízo resolvido) como que um
indulto lento.